Andy Parker está lutando para conseguir os direitos autorais da gravação da morte da repórter Alison Parker
Tudo começa como uma rotineira gravação para o noticiário da TV: uma entrevista com o chefe da câmara de comércio local. De repente, escuta-se o som de um tiro, assustando a equipe de duas pessoas que filmava. Enquanto o atirador surge fora do enquadramento da câmera, vê-se a reação de choque da repórter Alison Parker, de queixo caído. Uma onda contínua de tiros é disparada enquanto Alison grita. Ela corre desesperadamente e a câmera desaba no chão. A gravação é encerrada: a cena final mostra as pernas do atirador à medida que ele se aproxima.
O vídeo apavorante de 17 segundos foi gravado pelo cinegrafista Adam Ward em 26 de agosto de 2015, quando ele e Alison foram mortos por tiros disparados por um ex-colega insatisfeito enquanto trabalhavam perto de Roanoke, no Estado da Virgínia (EUA). Transmitida ao vivo, a horripilante gravação tornou-se rapidamente viral e foi visualizada milhões de vezes no Facebook, YouTube e em outros sites. Seis anos depois, ela ainda tem dezenas de milhares de visualizações, apesar dos esforços do pai de Alison, Andy, para retirar o vídeo da Internet.
Agora, Andy Parker transformou a gravação do assassinato em um token não fungível (NFT), uma tentativa complicada e possivelmente inútil de alegar ser dono dos vídeos – uma tática para obrigar as ‘big techs’ a fazerem algo devido aos direitos autorais.
Embora o Facebook e o YouTube tenham dito que tiraram do ar milhares de vídeos de assassinatos, dezenas continuam em suas plataformas. Ao longo dos anos, Parker recorreu a uma série de estratégias para apagar todas as cópias do vídeo, conseguindo o apoio de várias pessoas para pesquisar e denunciar publicações, apresentando queixas para os reguladores federais. No mês passado, ele lançou uma campanha no Congresso com foco parcialmente em defender que as empresas de mídias sociais são responsáveis pela disseminação de conteúdo prejudicial em seus sites.
Sob a lei atual, as plataformas são bastante protegidas da responsabilidade pelo conteúdo das postagens de seus usuários. Mas as plataformas talvez ainda estejam sujeitas a reivindicações de direitos autorais se não removerem o conteúdo infrator, e especialistas dizem que um processo alegando que o vídeo é material protegido por direitos autorais pode oferecer a Parker uma saída mais eficaz para tirá-lo do ar.
Os familiares de vítimas de tiroteios costumam depender das leis de direito autoral para conseguir algo. Lenny Pozner, cujo filho foi morto no tiroteio da escola Sandy Hook em 2012, apresentou centenas de reivindicações de direitos autorais para tirar do ar imagens do filho em sites que espalham teorias da conspiração a respeito do tiroteio em Sandy Hook. Os direitos autorais, como disse Pozner, são uma ferramenta mais eficaz do que confiar nas políticas de uma plataforma contra farsas, por exemplo, que podem muitas vezes não ser claras e aplicadas de modo desigual.
Os direitos autorais também têm sido uma ferramenta útil para as vítimas de pornografia não consensual, também conhecida como pornografia de vingança, onde a mera ameaça de ação legal pode ser mais eficaz do que os requerimentos para as plataformas, disse Massey.
Ganhando os direitos autorais
Parker não tem os direitos autorais da gravação do assassinato da filha que foi ao ar pela afiliada da CBS, a WDBJ, em 2015. Mas, em dezembro, ele criou um NFT das imagens no Rarible, um site de negociações de ativos em criptomoedas, na tentativa de reivindicar os direitos autorais do vídeo. Isso, ele espera, lhe dará legitimidade processual para mover uma ação judicial contra as empresas de mídias sociais para tirar os vídeos de circulação.
NFTs são peças únicas de conteúdo digital registradas como ativos usando blockchain, a mesma tecnologia por trás das criptomoedas. No ano passado, os NFTs ganharam muita popularidade conforme as pessoas corriam para comprar, vender e trocar NFTs colecionáveis criados a partir de obras de arte, memes e até mesmo uma versão animada do chapéu de Melania Trump.
De acordo com as atuais leis americanas, os detentores de direitos autorais são os únicos aptos a reproduzir, adaptar ou exibir a obra original, a menos que concedam permissão a outros para fazer isso. Os advogados especializados em propriedade intelectual disseram que o mesmo deve valer para os NFTs.
Mas a pressa em transformar a grande quantidade de conteúdo que circula livremente pela internet em NFTs levou a disputas de propriedade. A tecnologia blockchain registra um histórico permanente de cada transação em um servidor descentralizado, teoricamente facilitando o rastreamento da propriedade. Em meio à correria de aquisições, estão situações como a de Parker, em que um detentor de NFT criou uma versão duplicada e certificada por criptografia de um conteúdo, fazendo com que uma mesma mídia tenha dois supostos proprietários.
Especialistas dizem que a jurisprudência sobre a propriedade de um NFT ainda está nos estágios iniciais de desenvolvimento e já provocou uma série de disputas em relação aos direitos autorais. Em uma delas, um programador de 12 anos vendeu uma coleção de NFTs que criou de imagens pixeladas de baleias chamadas “Weird Whales” (Baleias Esquisitas) por mais de US$ 300 mil. Mas, de acordo com a revista Fortune, usuários acusaram o projeto de copiar uma imagem específica que o programador parece não ter direitos para criar seu NFT. O pai do menino disse à BBC que está “100% seguro” de que seu filho não infringiu a lei de direitos autorais e pediu a advogados que realizassem a “auditoria” do projeto.
A empresa controladora da WDBJ, a Gray Television, detém os direitos autorais da gravação original e se recusou a abrir mão deles. Kevin Latek, diretor jurídico da empresa, argumenta que a filmagem não retrata o assassinato de Alison Parker, pois o “vídeo não mostra o assassino ou os disparos durante o terrível incidente”.
Em um comunicado, Latek disse que a Gray Television “ofereceu inúmeras vezes dar uma licença adicional de direitos autorais a Parker” para solicitar às empresas de mídias sociais que removam as imagens da WDBJ “se estiverem sendo usadas de forma inadequada”.
Futuro
Mesmo se a estratégia de Parker com o NFT funcionar, remover as imagens protegidas por direitos autorais não seria uma vitória completa. O NFT não protege um vídeo diferente do assassinato gravado pelo atirador, Vester Lee Flanagan, um ex-repórter da WDBJ que foi demitido em 2013. Algumas plataformas, como o YouTube, têm sido mais rigorosas em relação a remover as imagens de Flanagan, segundo a política da plataforma de proibir vídeos de eventos violentos quando filmados pelo criminoso.
De acordo com as políticas do YouTube, a plataforma pode proibir usuários mais jovens de ver um vídeo violento em vez de remover o conteúdo se ele apresentar um contexto educacional “aceitável”, como no caso de uma reportagem, disse Malon.
O Facebook proíbe qualquer vídeo que mostre o tiroteio de qualquer ângulo, sem exceções, de acordo com Jen Ridings, porta-voz da empresa controladora da Meta. “Removemos milhares de vídeos que mostravam essa tragédia desde 2015 e continuamos a remover outros de forma proativa”, disse Jen em um comunicado, acrescentando que a empresa “incentiva as pessoas a continuar denunciando esse conteúdo”.
Mas, anos depois, os vídeos publicados logo após os dias seguintes ao tiroteio permanecem online.
Uma análise do Washington Post encontrou quase 20 postagens no Facebook com uma versão da gravação do assassinato, inclusive algumas filmadas pelo atirador. Embora algumas tivessem apenas centenas de visualizações, outras apresentavam dezenas de milhares, inclusive uma com mais de 115 mil visualizações e mais de mil curtidas que estão disponíveis desde agosto de 2015. O Facebook removeu todos os vídeos depois que eles foram denunciados pelo Post.
Até hoje, Parker não assistiu a nenhum dos vídeos. “Não consigo. Não consigo”, diz ele. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
Por Cristiano Lima