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Naturalismo, realismo seco, desdramatização do real e outras expressões (equivocadas, por vezes) aplicadas à obra do galês Bruno Dumont, marcada pela aspereza em “Camille Claudel 1915” (2013) e “Flandres” (Grande Prêmio do Júri em 2006) ou por um tom cartunístico (mas não menos cerebral) visto em “Mistério na Costa Chanel” (2016) e “O Pequeno Quinquin” (2014) caem por terra – ou, ao menos, parecem cair – em seu novo filme: “France”. Está no 51º Festival de Roterdã, depois de ter concorrido à Palma de Ouro em Cannes e integrado a lista de 10 Mais de 2021 da “Cahiers du Cinéma”, revista septuagenária que é uma bíblia para a cinefilia. E, lá em Roterdã (que vem ocorrendo online desde 26 de janeiro), assim como fez na Croisette, vem embatucando espectadores, pois é o filme mais arrebatador do cineasta desde “A Humanidade” (1999). É algo de se estatelar os olhos e fervilhar a mente, a começar da sequência inicial, quando Léa Seydoux no papel de uma jornalista e apresentadora de TV, a repórter France de Meurs, entrevista o presidente de seu país, numa divertidíssima jogada de edição com a figura de Emmanuel Macron. A seu lado está Blanche Gardin, atriz revelação do ótimo “Apagar o Histórico” (Prêmio do 70º Aniversário do Festival de Berlim, em 2020). Hilária, Blanche assume o papel da produtora de reportagem de Meurs, a doidona Lou, fazendo caras, caretas e insinuações de sacanagem para a colega, ao olhar pra Macron. É o bastidor de uma cobertura jornalística diante de nós, com a fotografia de David Chambille a ferver as cores – sobretudo o vermelho do batom da protagonista – na temperatura máxima. Vamos ter mais imagens tipo “por trás das câmeras” quando a personagem de Léa conversa com uma célula terrorista avessa a ISIS e quando participa de uma troca de tiros em tempo real, tentando defender a ideia de que o registro de zonas de conflitos “é sempre igual”, o que faz com desespero, sob uma chuva de balas. O título “France” escolhido por Dumont, que torna esse filmaço xará da newswoman vivida por Léa (aliás, esplendorosamente) e xará de sua nação, não se limita a uma brincadeira. Saído do díptico “Jeannette: a infância de Joana D’Arc” (2017) e “Jeanne” (2019), dos quais parte do mito de Joana D’Arc para esboçar uma operação de desconstrução do imaginário francês, Dumont vem agora espatifar a lógica de representação da “sociedade do espetáculo”. É um conceito que um compatriota seu, Guy Debord (1931-1994), cunhou, ao falar da fetichização do efêmero – e com ela, sua mercantilização. A França de Macron ama programas que falam sobre as tragédias do mundo, que as “espetacularizam”, e se sente mais serena ao apoiar causas humanitárias, sendo solidária a crises nos recônditos mais distantes do globo. Ama mais ainda as pessoas que apresentam esses programas, como é a figura de France de Meurs. Ela é uma popstar do jornalismo. Dá autógrafos, tira fotos com fãs, tem tietes. Sua vida doméstica anda em ebulição – talvez um pouco como esteja a pátria onde ela vive, depois dos protestos dos Coletes Amarelos, em meio a todas as tensões xenófobas que a assolam – e sua felicidade parece ter desaparecido. Mas ela sorri. Ela entra diante das câmeras com o cabelo laqueado pra noticiar as desgraças do planeta e pra mediar brigas como se nada a atingisse. Isso até que ela, por um descuido, fere um rapaz em um acidente de trânsito. Ali, a estrela desce. Ali, France passa a ser refém de um descontrole que vem de fora, de vetores sociais, e de vetores de sua própria inquietude. E Dumont cozinha essa trepidação de uma rotina de glória com maestria, apoiado numa atriz que só faz solidificar seu ferramental dramático e seu carisma. Léa periga virar “a” atriz francesa. Se é que já não o é, vide “007” e sucessos afins. Sua interpretação aqui é pra marcar Roterdã. É pra demarcar sua trajetória. É pra oxigenar Dumont.
Por Rodrigo Fonseca