Por Eduardo Gonçalves
O Carnaval brasileiro vai acontecer em clima de Big Brother, o todo-poderoso sistema que vigiava a sociedade no clássico 1984, de George Orwell (dessa obra veio também a inspiração para batizar o popular reality show). A maior festa popular do país será um grande laboratório para a utilização de uma das mais avançadas e controversas ferramentas tecnológicas usadas hoje na segurança pública por aqui e pelo mundo: o reconhecimento facial.
Esse sistema compara fotos de procurados da Justiça armazenadas em seu banco de dados com imagens fornecidas por câmeras inteligentes instaladas em locais públicos. Quando há um porcentual alto de coincidência entre dois rostos, soa o alarme para a polícia ir a campo abordar o possível fugitivo. Sistemas desse tipo estarão em operação em Salvador e São Paulo. Juntas, as capitais reúnem em suas ruas no período momesco mais de 10 milhões de foliões. No total, 106 câmeras inteligentes estarão posicionadas em busca de cerca de 40 000 pessoas com ordens de prisão decretadas por vários tipos de delito, em meio à aglomeração de fantasiados.
A capital baiana fez um projeto piloto no ano passado, com dezesseis câmeras. Em 2020, o número vai saltar para 86. Os equipamentos serão distribuídos pelas vias de acesso aos blocos e pontos turísticos. “Às vezes, tem um assassino ou um traficante passando do seu lado e você nem sabe”, afirma o coronel Marcos Oliveira, superintendente de gestão tecnológica da Secretaria de Segurança Pública da Bahia. São Paulo colocará em campo vinte câmeras, tendo na retaguarda o mais extenso banco de dados do país, com informações de mais de 30 000 foragidos e 10 000 desaparecidos. Belo Horizonte, Fortaleza, Florianópolis e Brasília também realizarão testes no Carnaval, mas em uma escala menor.
Em questão de segundos, o sistema é capaz de escanear o rosto de milhares de pessoas para criar uma espécie de digital facial, transformando em algoritmos as principais características dessa parte do corpo, como a distância entre os olhos, a linha das mandíbulas, o tamanho da boca e cicatrizes. Cada câmera é alimentada com uma “blacklist”, um banco de dados de foragidos da Justiça ou desaparecidos. Quando há uma compatibilidade de pelo menos 90% entre os dados comparados, o sistema emite um alerta para a central policial, que, por sua vez, aciona a equipe de campo para fazer a abordagem.
Na Bahia, ocorreram ao todo 134 prisões por meio do sistema desde o Carnaval do ano passado. O “Zero Um” foi o folião Marcos Vinicius de Jesus Neri, de 19 anos, procurado por homicídio havia doze meses. Fantasiado de melindrosa de cabaré, com direito a peruca e luvas roxas, além de uma metralhadora de água, ele estava prestes a entrar no tradicional bloco As Muquiranas quando a câmera o flagrou entre as 500 000 identificações feitas diariamente pelo sistema. Logo em seguida, agentes da PM apareceram para acabar com a festa de Neri, que continua preso até hoje. Em abril de 2019, na famosa Micareta de Feira de Santana, 33 pessoas que estavam farreando livres, leves e soltas acabaram detidas com a ajuda do equipamento.
Em São Paulo, o prédio do Instituto de Identificação da Polícia Civil sediará a sala de controle do reconhecimento facial na cidade. “O sistema consegue identificar a pessoa mesmo que ela tenha feito alguma cirurgia plástica ou esteja maquiada ou com óculos de sol”, afirma o delegado Mitiaki Yamamoto, diretor do departamento. O período do Carnaval é o palco perfeito para o teste da nova tecnologia devido à grande quantidade de gente na rua. O grande problema é quando o equipamento não acerta, o que provoca enorme constrangimento e até mesmo injustiças. Em setembro, um rapaz de 25 anos com deficiência mental foi abordado por policiais armados em Salvador a caminho de uma consulta médica. A mãe, que o acompanhava, relatou que os agentes estavam caçando dois acusados de assalto e que o filho dela havia sido “reconhecido” pelas câmeras. O mal-entendido só foi desfeito depois que ela mostrou a identidade do jovem. Um teste realizado no Rio também resultou em confusão. No bairro de Copacabana, houve o registro de pelo menos duas detenções por engano em julho. “O sistema identifica muitas vezes pessoas semelhantes ou que, pelo ângulo da imagem captada, ficam parecidas”, diz Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
O sistema também preocupa pelo potencial de ser usado como arma de vigilância por governos autoritários, seja para reconhecer manifestantes, seja para perseguir opositores políticos. Nesse aspecto, os olhares se voltam para a China, que possui hoje mais de 170 milhões de câmeras inteligentes. “Para muitos, o sistema remete à era do imperador Mao Tsé- tung, que durante a Revolução Cultural criou a cultura de ‘denunciar os inimigos do partido’ ”, disse a VEJA a professora de economia da Universidade de Michigan Linda Lim, americana de ascendência chinesa. Nos megaprotestos que sacudiram Hong Kong no fim do ano passado, um dos principais pleitos era o fim do sistema de vigilância da China. Para confundirem o equipamento, os manifestantes foram às ruas com lasers e pinturas faciais — os postes com câmeras de reconhecimento facial, aliás, eram os alvos preferenciais de vandalismo.
O sistema empregado foi desenvolvido pela Huawei, cuja sede está localizada em Shenzhen, uma das cinco cidades mais vigiadas do planeta (todas na China). O país asiático tem planos de triplicar o número de câmeras inteligentes até 2021. Em um futuro não muito distante, o sistema será usado como senha para pagar contas, acessar diferentes aparelhos e entrar em locais públicos e privados — e as forças policiais terão acesso a todas essas informações. Apesar de não ter dados muito transparentes, a China é hoje um dos países com menor taxa de homicídios do globo — 0,6 a cada 100 000 habitantes. O índice brasileiro é de 30 a cada 100 000. Comparações do tipo alimentam a discussão sobre se vale sacrificar liberdades individuais por mais segurança. Em 1984, de Orwell, o protagonista questiona a tirania do sistema e, sob tortura, acaba por se render ao Big Brother. Na vida real, a esperança é que o debate atual sobre reconhecimento facial encontre soluções para criar regras claras em busca de um equilíbrio. Que a tecnologia traga benefícios sem se transformar em um novo e incômodo instrumento de opressão.
Com reportagem de André Siqueira