Seres sensíveis já experimentaram tal sensação: a vergonha de integrarem a espécie humana. Diante de comportamentos insólitos, indignos de quem alimenta a pretensão de ser racional, depois da conclusão de que o projeto humano é um fracasso, vem esse constrangimento. Pertenço eu também a essa raça?
Há situações, na História Universal, em que à policrise se acrescenta um dilaceramento e insuportável sofrimento da consciência. Algo que perturba a lucidez contemporânea, quando vê governos destruírem a natureza e imporem à população uma desenfreada busca por armamentos pesados. Tudo contrariamente ao que significa vida, harmonia, paz na convivência.
Na literatura, encontra-se algo análogo na vida atribulada de Roland Barthes, (1915-1980), acometido de tuberculose na casa dos vinte anos, enfermidade que matou milhares de jovens franceses, em época trágica, pois coincidente com a Segunda Grande Guerra.
Seu desabafo é eloquente: “É um mal terrível que a alma sente, com todas essas agressões à justiça. Não posso exprimir quanto estou revoltado e sofro moralmente, choro interiormente por todos os sofrimentos do mundo, por todos os crimes terríveis cometidos pelos Estados, por causa de um orgulho verdadeiramente ímpio. Todos os dias nossa consciência humana é insultada e nos sentimos rodeados pela lepra de uma desonra permanente, e também terrivelmente ameaçados por esse mar de crimes, de grosserias, de atos de canibalismo, protegidos, sustentados pelas leis, pela imprensa, etc. É absolutamente repugnante e, a cada dia, tenho vários instantes de insuportável tristeza, de vergonha do homem, que dissipo apenas por instinto de conservação para viver, apesar de tudo, o resto do dia”.
Barthes experimenta uma angústia quase metafísica do futuro. Perdeu toda a esperança no gênero humano e na ingênua noção de sua perfectibilidade. Como acreditar nessa vocação dos homens, se a podridão se espraia em tantos quadrantes da vida pública?
Tal sentida decepção vai ser também explicitada por Gilles Deleuze, no seu “O Abecedário”. Várias vezes ele fala em “vergonha de homem”, vai repetir como “vergonha de ser um homem”, nos trechos “A, como animal” e “L, como literatura”. Evidencia uma resistência profunda à opressão exercida pelos Estados, a consciência de pertencer a um mundo que está sendo destruído.
Não pode ser outra a sensação contemporânea de quem consegue enxergar, ouvir e discernir. De quem não se conforma com a violência física e verbal, virtual e midiática. Dos que não se resignam com gabinetes de ódio, com disseminação de inverdades, com negacionismo, com teorias conspiratórias e com a abundância de imbecilidades que fazem o mais ingênuo desacreditar da superioridade dos humanos em relação às bestas.
A violência da destruição de valores é suficiente a destroçar a crença na evolução da espécie. Não são poucos os que parecem acordar de um pesadelo e se servem das mesmas palavras de Roland Barthes, impregnado de compreensível decepção: “eu que não ligava meu pensamento aos problemas do mundo, eu que não compreendia nada dele, meus olhos se abrem paulatinamente e tenho a impressão de que vejo exatamente como tudo se passa e mesmo como tudo se passará. E minha impotência, meu silêncio, o dos outros, me fazem sofrer cruelmente. Por momentos, tenho realmente a impressão de que a verdade dura me queima, e me detenho perdido à beira de um abismo”.
Só que é preciso resistir. Não é possível que a humanidade retroceda na escalada ética, mergulhe na imbecilidade, considere natural chafurdar na ignomínia e no lamaçal da mentira e da hipocrisia.
Se a humanidade aceita ser chamada “cristã”, é o momento de procurar na origem desse qualificativo, a razão que leva os humanos de boa vontade a encontrarem forças e se reabilitarem. É que o Cristo ofereceu a mensagem mais sedutora para redimir as criaturas frágeis, fracas e inconstantes, que somos todos nós. Ele nos chamou “irmãos”. Assim como Ele, filhos de um Deus criador, que nos fez à Sua imagem e semelhança.
O convite é sedutor. Indica um destino mais nobre do que o mergulho na miséria moral, o cultivo dos vícios e das baixezas. Uma cristandade tem de dar o exemplo. E tentar resgatar os primeiros tempos do cristianismo, naquela fase em que os cristãos eram identificados pela coesão e fraternidade no seu convívio.
Voltaremos à fase do “vede como se amam”? É a esperança. Sem isso, preparemo-nos para o caos e pela definitiva vergonha de ser humano.
Por José Renato Nalini