Prerrogativa prevista na Lei Orgânica da Magistratura, em vigor desde a ditadura militar, é alvo de projeto de parlamentar do Podemos de Goiás que sugere pena de demissão para magistrados envolvidos em faltas graves no lugar da inatividade com vencimentos proporcionais
Pausado desde junho, o projeto para acabar com a aposentadoria compulsória de magistrados condenados por faltas disciplinares graves deve ser retomado na volta do recesso legislativo.
A primeira versão da proposta foi apresentada no final do ano passado pelo deputado federal José Nelto (Podemos-GO) na forma de Projeto de Lei Complementar. O texto sugere que, no lugar da aposentadoria com direito aos vencimentos proporcionais, passe a valer apenas a pena de demissão. Hoje, a perda do cargo por demissão depende de uma ação judicial e não pode ser imposta via processo administrativo.
A proposição, no entanto, foi devolvida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), com base no trecho do regimento interno que exige propostas ‘devidamente formalizadas e em termos’. O entendimento é que a matéria não pode ser modificada por meio de projeto de lei. Isso porque tenta reformar uma previsão presente na Constituição, o que só pode ser feito via Proposta de Emenda Constitucional (PEC).
Quando apresentou o projeto, José Nelto já sabia do entrave, mas tentava ganhar tempo para abrir o debate. O deputado vem conversando nos bastidores com líderes partidários para alinhar apoios ao texto. A ideia é que o quórum de assinaturas necessário para garantir a tramitação da PEC seja levantado antes mesmo da formalização da proposta, o que minimiza as chances de reação contrária.
A expectativa, no entanto, é que a ‘PEC da aposentadoria compulsória‘ seja formalizada apenas no próximo ano. A avaliação é que não há tempo hábil para as negociações antes do recesso legislativo, já que a última semana de trabalhos é de esforços concentrados na votação do relatório de outra PEC, a da prisão em segunda instância.
A sensibilidade do texto está, além do tema, na tentativa de eliminar uma prerrogativa prevista no guarda-chuva da chamada Lei Orgânica da Magistratura (Loman). O movimento acende o alerta na classe pelo risco de pavimentar o caminho para outras mudanças com maior potencial de prejuízo aos magistrados.
A Loman organiza o Poder Judiciário. É nela que estão listadas as regras de funcionamento, estrutura hierárquica e administrativa, garantias, vencimentos, direitos, deveres e penalidades da magistratura.
O dispositivo está em vigor desde março de 1979, quando o País vivia sob o ordenamento da ditadura militar, sancionado pelo então presidente Ernesto Geisel. Em 1988, com a promulgação da Constituição, ficou pendente uma atualização do texto por meio de lei complementar de iniciativa privativa do Supremo Tribunal Federal (STF) – o que até hoje não foi feito.
Além da aposentadoria compulsória como punição para desvios administrativos, a Loman também prevê, por exemplo, 60 dias de férias por ano para juízes e juízas, enquanto a maioria da população desfruta de metade desse prazo.
A lei da magistratura também permite a venda do período não usufruído. Em quatro anos, entre setembro de 2017 e setembro de 2021, os tribunais gastaram ao menos R$ 2,42 bilhões com o pagamento de indenização a juízes que não saíram de férias pelos 60 dias, apontam dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Para o presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Eduardo André Brandão, o Congresso Nacional tem prerrogativa para discutir qualquer tema, desde que não interfira na autonomia e independência dos outros Poderes da República.
Brandão lembra ainda que eventuais alterações na Loman precisam passar pelo crivo do Supremo Tribunal Federal.
“É preciso também observar que temos outras questões relevantes para analisar, como a falta de revisão anual dos vencimentos da carreira e outras situações que necessitam ser apreciadas com grande urgência. É preciso que a magistratura pare de ser tratada como uma carreira de privilégios”, afirma.
A presidente da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis), Vanessa Mateus, vê a aposentadoria compulsória como um tema de ordem previdenciária.
“Quando uma pessoa recolhe para a Previdência, não importa se ela cometeu um crime, praticou um desvio, perdeu o emprego. Caso preencha os requisitos para se aposentar, irá receber a aposentadoria proporcional. E isso ocorre também com o magistrado”, pontua.
Na avaliação da juíza, os critérios para demissão dos magistrados funcionam como uma garantia para dificultar represálias e pressões por decisões.
Para Vanessa, não há espaço político para a votação de uma nova versão da Loman.
“Ela deve ser precedida de uma discussão mais ampla sobre a magistratura, sobre as garantias, da população e do Poder Judiciário. Atualmente, há uma série de projetos de lei que visa afetar as estruturas do Poder Judiciário, por meio do afastamento de suas garantias. Não é o momento, portanto, para discutir uma proposta desse tipo”, crava.
Por Rayssa Motta