Esses artistas de destaque – da Colômbia ao Egito e ao Japão – redesenharam o mapa do Surrealismo, o movimento artístico mais provocativo do século 20
Nos sonhos, você pode ir a qualquer lugar; nos sonhos, nenhum lugar é longe demais. Surrealism Beyond Borders (Surrealismo além das Fronteiras), uma volta ao mundo no Metropolitan Museum of Art, é um mapa de outro globo: um planeta redesenhado por artistas-cartógrafos, onde antigas suposições geográficas não fazem mais sentido. Relógios derretidos, homens com chapéus-coco? Você pode mantê-los. Nessa exposição os clássicos do Surrealismo – aquele telefone de lagosta! – cedem o centro das atenções aos desejos e pesadelos do Haiti e Porto Rico, Japão e Coréia, Egito e Moçambique. Nessas reflexões distorcidas, vemos o Surrealismo como uma abordagem abrangente da liberdade artística, onde a Europa não tem monopólio sobre seus desejos.
1221559Há seis anos sendo preparada, Surrealism Beyond Borders foi organizada por Stephanie D’Alessandro no Met e Matthew Gale na Tate Modern em Londres, para a qual a exposição irá viajar este ano. Assim como em exposições recentes como International Pop, no Walker Art Center em Minneapolis, ou Postwar, no Haus der Kunst em Munique, esta nova exposição concebe o Surrealismo não exatamente como um movimento, mas como uma tendência ampla e tentacular. Suas formas e objetivos mudaram à medida que migraram e, portanto, narrativas simples de quem influenciou quem não funcionam. Isso é algo mais grandioso, confuso e muito mais atraente: uma cartografia instável de imagens e ideias em movimento, soprando pelo mundo como ventos alísios do subconsciente.
Esses movimentos eram, como tudo com o Surrealismo, não muito racionais e lineares. O Surrealismo era uma rede de trocas, traduções, idealizações e mal-entendidos que fluía livremente – e, sobre esse assunto, o que é raro nessa época de moralismo cultural presunçoso, os curadores realmente nos tratam como adultos.
No Met, você verá artistas de 45 países – suas obras foram emprestadas de 95 coleções de Bogotá a Camberra, o que não foi um empreendimento fácil durante a pandemia. Há objetos da década de 1920 e também alguns recentes como da década de 1990, bem depois de o “movimento surrealista” ter engolido poeira. As mais de 260 pinturas, fotografias e filmes estão cheios de desejo e, às vezes, de mau gosto. Não espere uma parada de sucessos de obras-primas! Esta é uma exposição na qual você não vai gostar de muitos trabalhos – o que certamente é verdade para mim, para quem a maioria das pinturas surrealistas parece antiquada – mas você ainda ficará entusiasmado com a inteligência desta exposição e grato pela descoberta de artistas caribenhos, africanos, asiáticos e do Leste Europeu que deixam Dalí e seus amigos na sombra.
Aqui está o que mais transparece em Surrealism Beyond Borders: O Surrealismo foi muito mais do que um movimento artístico parisiense com seguidores estrangeiros posteriores (e menores), no caminho do Impressionismo ou Cubismo. O Surrealismo era mais como uma epidemia: uma linguagem ambiente, variável e autopropagada de recusa que artistas como esses usavam quando necessário. Contra sua burguesia ou ditador local. Contra a igreja ou os colonizadores. Contra quaisquer restrições ao subconsciente humano e à liberdade humana.
Rita Kernn-Larsen, Dinamarca
O poder do sonho
O Surrealismo nasceu em Paris em 1924, mas o grupo se projetou pela Europa desde o início, e realizou quase uma dezena de exposições oficiais no exterior. A primeira foi em Copenhage, onde Rita Kernn-Larsen absorveu rapidamente o que André Breton, no Manifesto Surrealista, chamou de “a onipotência do sonho”. Em Phantoms (1933-34), dois espectros em forma de balão com olhos pequeninos pairam sobre listras rosa, roxas e verde-azuladas: flutuando ou caindo, planando ou se afogando, é difícil dizer o que. Kernn-Larsen passaria a expor com os surrealistas em Londres e Paris – uma das poucas mulheres nessas exposições oficiais – e se tornaria a primeira surrealista a expor com Peggy Guggenheim.
Koga Harue, Japão
Surrealismo Científico
Mas mesmo antes da primeira exposição internacional, os artistas do exterior estavam se opondo aos chefes parisienses do movimento. “O verdadeiro Surrealismo não pode seguir a autoridade de André Breton”, disse um poeta japonês em 1930 – e Koga Harue liderou uma tendência surrealista em Tóquio que deu às máquinas e à indústria a mesma proeminência do subconsciente humano. The Sea, sua pintura mais importante, desencadeou uma tempestade no mundo artístico de Tóquio quando foi exibida pela primeira vez em 1929: um submarino na tranversal flutua aos pés de uma nadadora gigante, enquanto um zepelim voa (ou bombardeia? ) em direção a uma fábrica semi-submersa.
Ladislav Zívr, Tchecoslováquia
Sapatos em espera
Talvez mais do que a pintura, as obras de arte mais representativas do Surrealismo são objetos: pequenos fetiches curiosos, geralmente feitos de materiais encontrados e dimensionados para caber nas mãos, que colidiam com o bom gosto do dia a dia. A exposição do Met tem uma caixa com uma dezena de objetos, incluindo Incognito Heart de Ladislav Zívr, que viria a se destacar no Grupo 42, um coletivo surrealista de Praga. O coração de Incognito Heart é na verdade um par de sapatos de salto alto emaranhados em redes de pesca, amarrados com um rosário, empalados em varas de metal.
Paul Paun, Romênia
Liberdade para rabiscar
Outra técnica surrealista clássica: o automatismo, ou rabisco não coreografado, por meio do qual os artistas acreditavam que poderiam escapar dos grilhões da composição consciente para revelar uma verdade além da racionalidade. Junto com obras de Miró e Masson, esta exposição apresenta obras de arte automatizadas da Hungria, Peru, Japão, Nova Zelândia – e este desenho da época da guerra em Bucareste, onde o artista Paul Paun se juntou a um círculo surrealista local que tinha que expor em segredo. (Paun e vários outros surrealistas romenos eram judeus; eles publicaram em francês.) Em seu desenho a tinta de 1943 The Cloud, uma figura humana curvada parece ter dendritos brotando de seus braços, em meio a emaranhados rizomáticos que parecem tão confinantes quanto uma rede de corda.
Ted Joans, Estados Unidos
Desenhado por Cem Mãos
Talvez a reavaliação mais extraordinária desta exposição aconteça perto de casa. Ted Joans, nascido no sul de Illinois em 1928, descobriu o Surrealismo quando criança e aplicou suas estranhas técnicas à poesia falada e ao free jazz. (Ele se mudou para o Canadá em 2000 para protestar contra o assassinato de Amadou Diallo, um imigrante da África Ocidental que estava desarmado, por quatro policiais da cidade de Nova York. Joans morreu em autoexílio três anos depois.) A exposição do Met termina com o extraordinário Long Distance, de Joans, que se estende por quase 10 metros: um“ cadáver requintado ”, ou desenho coletivo em que cada participante aumenta a obra anterior, que Joans carregou da Europa para a África e para a América Latina. Reúne mais de 100 artistas, poetas, intelectuais e músicos que estilo e geografia normalmente separariam: Malangatana com John Ashbery, Michel Leiris com Betye Saar. Suas conexões são estranhas, inesperadas, mas também insolúveis – forjadas no fogo do movimento e do sonho. “O jazz é minha religião”, disse Joans. “O Surrealismo é o meu ponto de vista.”/TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
Por Jason Farago