A discussão sobre a cobrança do Diferencial de Alíquota (DIFAL) do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transportes e de Comunicações (ICMS) não é nova. Já em 2015, com a edição da Emenda Constitucional (EC) nº 87/2015, pretendeu o Congresso Nacional resolver o problema da repartição de receitas do ICMS decorrentes das operações e prestações que destinavam bens e serviços a consumidor final não contribuinte, sobretudo aquelas oriundas do comércio eletrônico, visto que, antes da referida EC, previa-se a adoção da alíquota interna do Estado remetente, cabendo-lhe integralmente o valor arrecadado.
Com o advento da EC nº 87/2015, criou-se, então, nova regra de repartição: deveria ser adotada a alíquota interestadual, cabendo ao Estado de localização do destinatário do imposto – antes prejudicado pela regra anterior – a diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual.
A cobrança do ICMS-DIFAL, todavia, também exige a edição de Lei Complementar que introduza, no ordenamento jurídico, normas gerais sobre o tema (conforme o inciso XII do § 2º do artigo 155 e a alínea “a” do inciso III do artigo 146 da Constituição). Esse racional foi acolhido pelo o STF no julgamento do Tema nº 1.093 – Recurso Extraordinário nº 1.287.019). Concluiu aquele Tribunal que a cobrança DIFAL pressupõe, obrigatoriamente, a edição de LC veiculando normas gerais relacionadas ao ICMS, reconhecendo, assim, a inconstitucionalidade da cobrança enquanto não editada tal norma.
Contudo, apesar da declaração de inconstitucionalidade, a decisão foi modulada para produzir efeitos a partir de 2022. Ou seja, validou-se a cobrança do ICMS-DIFAL sem lei complementar até 31.12.2021. A partir daí, já não seria mais possível cobrá-lo enquanto não fosse expedido aquele diploma normativo. Buscou-se, com tal decisão, assegurar que o Congresso Nacional pudesse editar e aprovar a referida lei complementar (sendo publicada após a sanção presidencial), minimizando, com isso, um eventual e potencial prejuízo arrecadatório por parte de Estados e Distrito Federal.
Os Estados e Distrito Federal, por sua vez, passaram a editar, ainda em 2021, Leis Ordinárias (o Estado de Minas Gerais editou um Decreto – o que, frise-se, viola o princípio da legalidade, disposto no inciso I do artigo 150 da Constituição) para definir as condições de incidência e a forma de cálculo do DIFAL. Esse movimento, a toda evidência, contrariou a decisão do STF, que, insista-se, exigiu a prévia edição de lei complementar, como se mencionou acima.
Em 4 de janeiro de 2022, foi finalmente sancionada a Lei Complementar (LC) nº 190/2022 (publicada em 5 de janeiro de 2022), que, implementando o entendimento consignado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.287.019 (Tema nº 1.093) e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 5.469, introduziu normas gerais sobre o ICMS-DIFAL.
Vale mencionar, em primeiro lugar, que, em relação à discussão sobre a existência de vícios formais nas Leis Ordinárias, porque anteriores à LC, não há posicionamento efetivamente firmado pela Suprema Corte.
Isso, porque o STF, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.221.330, manifestou-se no sentido de que leis estaduais editadas antes da entrada em vigor da Lei Complementar são válidas, conquanto produzam efeitos apenas a partir da vigência daquela.
Contudo, o mesmo STF, anteriormente, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 439.796, manifestou-se no sentido de que a lei ordinária publicada antes da norma que lhe confere validade (naquele caso, emenda constitucional e lei complementar) é inconstitucional e, por conta disso, a posterior edição da lei complementar não convalidaria a inconstitucionalidade da lei ordinária para torná-la constitucional – posicionamento este que é comungado pelos autores deste artigo.
Em segundo lugar, importa saber – e este parece ser o ponto mais polêmico da nova regra – se a LC nº 190/2022 deve se submeter ao princípio da anterioridade anual, previsto na alínea “b” do inciso III do artigo 150 da Constituição Federal.
Adotando-se o mesmo racional usado pelo STF no julgamento do RE nº 1.221.330, parece ser correto afirmar que sim, a cobrança do DIFAL do ICMS só poderá ser realizada a partir de 2023. Basta ver que, naquele precedente, o STF condicionou a eficácia das leis estaduais à prévia edição e vigência da Lei Complementar.
Ou seja, embora as leis estaduais tenham sido editadas em 2021, só cabe cogitar a produção de efeitos a partir da vigência da LC nº 190/2022. Afinal, a anterioridade (anual e nonagesimal) diz respeito à eficácia da regra. Ainda que ela – Lei Complementar – não tenha instituído ou aumentado tributo, é correto afirmar que as leis estaduais, responsáveis por instituir a regras de cobrança do DIFAL do ICMS, só podem ter plena eficácia após a partir da vigência da LC nº 190/2022.
Ora, se a LC nº. 190/2022 só foi sancionada e promulgada em janeiro de 2022, a cobrança do DIFAL deve, necessariamente, observar a anterioridade anual, considerando o momento em que foi publicada a aludida lei complementar (no caso, 5 de janeiro de 2022), visto que somente será instituída a cobrança do DIFAL a partir de então, o que evidencia só ser possível aplicar as novas leis a partir de janeiro de 2023, em respeito à anterioridade da alínea “b” do inciso III do artigo 150 da Constituição.
Curiosamente, o próprio Congresso Nacional, ao editar a LC nº 190/22, reconheceu a necessidade de se observar a anterioridade prevista na CF/88. Basta ver que o seu artigo 3º, acertadamente, condiciona a produção de efeitos da norma ao princípio da anterioridade nonagesimal, previsto no artigo 150, inciso III, alínea “c”, da CF/88.
A toda evidência, esperavam os legisladores que a LC nº. 190/2022 fosse sancionada ainda em 2021. Nesse cenário, bastaria a observância à anterioridade nonagesimal, já que a anual – objeto de controvérsia – teria sido cumprida.
Conquanto o Congresso Nacional não tenha previsto o atraso na sanção e promulgação da LC, cabe recorrer, como último recurso, à coerência: soubessem os legisladores que a LC nº 190 só seria sancionada em 2022, teriam mencionado, no mesmo artigo 3º, o dever de se observar, também, a anterioridade anual (o que sequer seria necessário, visto que a Constituição Federal já disciplina que as normas que instituem ou majoram tributos devem observar a noventena, por força da alínea “c” do inciso III do artigo 150 da Lei Maior).
Para piorar, o Estado de São Paulo editou o Comunicado CAT nº 2, de 27/01/2022 para informar que passará a exigir o DIFAL do ICMS a partir de 1º de abril de 2022, na linha do que prevê a LC nº 190/2022. Embora se concorde, acertadamente, com o respeito ao princípio da anterioridade nonagesimal, equivoca-se ao ignorar o princípio da anterioridade anual.
Frise-se que não foi apenas o Estado de São Paulo quem “atropelou” o princípio da anterioridade anual. Quase todos os Estados da Federação estão ignorando esse princípio constitucional.
Isso, porque os Estados (i) da Bahia (Lei nº 14.415/2021), (ii) da Paraíba (Lei nº 12.190/2022), e (iii) do Piauí (Lei nº 7.706/2021), entendem que a cobrança do DIFAL se faz possível já a partir de 1º de janeiro de 2022, desrespeitando os princípios da anterioridade anual e nonagesimal.
Já os Estados que se manifestaram que a cobrança do DIFAL se faz permitida a partir do mês de março de 2022 foram (i) Rio Grande do Norte (a partir de 01.03.2022, conforme Comunicados e Avisos), (ii) Roraima (a partir de 30.03.2022, conforme Lei nº 1.608/2021), (iii) Sergipe (a partir de 29.03.2022, conforme Lei nº 8.944/2021), (iv) Tocantins (a partir de 30.03.2022, conforme Medida Provisória nº 29/2021), (v) Rio de Janeiro (a partir de 01.03.2022, conforme Resposta no “Fale Conosco”), e (vi) Acre (a partir de 01.03.2022, conforme Comunicado).
Por fim, os Estados que entendem que a cobrança do DIFAL se faz possibilitada a partir de 1º de abril de 2022 são (i) São Paulo (como já mencionado, conforme Lei nº 17.470/2021 e Comunicado CAT nº 2/2022), (ii) Alagoas (conforme Comunicado DIFAL 2022), (iii) Ceará (conforme Comunicados DIFAL), (iv) Minas Gerais (conforme Decreto nº 48.343/2021), (v) Paraná (conforme Lei nº 20.949/2021), (vi) Mato Grosso (conforme Resposta à Consulta S/N 2022), (vii) Mato Grosso do Sul (conforme Resposta à Consulta S/N 2022), (viii) Pernambuco (a partir do dia 4 de abril de 2022, conforme Lei nº 17.625/2021), e (ix) Amazonas (a partir de 5 de abril de 2022, conforme Nota DIFAL 2022).
O ano de 2022 mal começou, mas já logrou frustrar a expectativa dos contribuintes, ansiosos, desde há muito, por um pouco mais de racionalidade no enorme manicômio tributário. Cabe aguardar e torcer para que as autoridades competentes apliquem, adequadamente, o Texto Constitucional vigente.
Por Bruno Romano, José Luiz Crivelli Filho e Michelle Cristina Bispo Romano