Francês abre Festival de Berlim com ‘Peter von Kant’, em aberta homenagem ao cineasta alemão, que tanto admira
Artífice do melodrama, essencial para a reestruturação do gênero no pós-guerra registrando intolerâncias como a homofobia, o etarismo e a xenofobia, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) é uma paixão para François Ozon desde seus tempos de estudante, quando assistiu a O Casamento de Maria Braun (1979) e outros cults do mestre alemão na faculdade.
Embora um de seus primeiros sucessos nos cinemas tenha sido a adaptação de uma peça do alemão, Gotas d’Água em Pedras Escaldantes, o diretor parisiense de 54 anos sempre sonhou em oferecer a outros fãs da estética fassbinderiana uma releitura daquele universo capaz de surpreender olhares.
Há quem acredite que este sonho de Ozon há de se materializar na quinta, dia 10, quando um filme seu vai abrir o 72.º Festival de Berlim: Peter von Kant, que vai concorrer ao Urso de Ouro. Seu novo longa é uma releitura de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, peça teatral escrita por Fassbinder em 1971 e filmada por ele mesmo em 1972.
No longa original, Margit Carstensen era Petra, uma estilista de renome apaixonada por Karin, interpretada por Hanna Schygulla (a diva de Rainer Werner), e consolada por sua secretária, Marlene (Irm Hermann). Agora, em cena, estão Denis Ménochet e Isabelle Adjani.
“Mas eu trouxe Schygulla comigo!”, alerta Ozon, em entrevista ao Estadão, concedida via Zoom durante o 24.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, o fórum anual da Unifrance para a promoção da produção audiovisual europeia. “Em 2004, eu recebi um prêmio especial (dado pelo Festival de Hamburgo), o troféu Douglas Sirk, das mãos de Hanna. Naquele momento, já pensei em poder trabalhar com ela. Agora, em meu filme mais recente, Está Tudo Bem, ela faz uma participação, pois eu precisava de uma atriz que falasse um alemão com um sotaque bem específico, como ela fala. E aí veio o projeto de Peter von Kant, que rodei no ano passado. Ela é parte da energia de Fassbinder, um diretor que foi muito importante para meus estudos.”
Nada se sabe sobre o quão fiel Ozon será em sua adaptação. Pouco se sabe do que ele há de mostrar a um júri presidido por M. Night Shyamalan, que conta com o cearense Karim Aïnouz como um dos jurados. Há apenas a certeza de que o cineasta vai trabalhar com um ator em fase de apogeu: Ménochet foi aclamado em Veneza, em 2017, em Custódia, e arrebatou elogios por sua atuação em Graças a Deus, que deu a Ozon o Grande Prêmio do Júri de Berlim, em 2019.
“Uma das coisas que mais admiro em Fassbinder é a maneira como ele trabalhava sempre com os mesmos atores, buscando dessa sua trupe uma proposta nova”, disse Ozon. “O maior desafio agora com Peter von Kant é o simbolismo de estar exibindo o filme em Berlim 50 anos depois de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant ter concorrido ao Urso de Ouro. Ele passou lá em uma sessão em 1972. Agora, quero saber como o público alemão reage. Quero saber se eu sou capaz de surpreender Berlim.”
Na ativa desde 1988, quando lançou o curta-metragem Photo de Famille, Ozon estabeleceu uma das mais prolíficas (lança um longa-metragem por ano) carreiras do cinema francês contemporâneo, sempre disputando prêmios nos maiores festivais do mundo. Ele só não é muito simpático a avaliações de sua própria obra. “Eu não posso perder o meu tempo fazendo o seu trabalho, que é pensar o meu cinema. Eu tenho de fazer”, disse ele, durante o Rendez-vous, numa rara impaciência, de um diretor conhecido pela cordialidade. “Eu não sou um cineasta de método e sei que cada filme é diferente do outro. Um pede mais silêncio. Outro pede mais palavra. Mas eu sempre tento uma certa leveza, como foi o caso de Está Tudo Bem, em especial esse filme, que fala de morte, de perda, e se desenrola a partir do legado de uma grande amiga minha.”
Exibido no Brasil em novembro, durante o Festival Varilux, Está Tudo Bem (ou Tout s’est Bien Passé) é um diálogo que Ozon travou com o livro Tudo Correu Bem, de Emmanuèle Bernheim (1955-2017), sobre o empenho da escritora em ajudar o pai, um colecionador de arte, a cometer uma eutanásia após um AVC. No elenco, estão Sophie Marceau e André Dussollier. O projeto foi feito às pressas, em meio à pandemia, enquanto o realizador colhia os louros pelo sucesso de seu último hit, Verão de 85 (Été 85), selecionado por Cannes, indicado à Concha de Ouro de San Sebastián, no norte da Espanha, e transformado num êxito comercial pós-lockdown, em 2020, com a venda de 304 mil ingressos em seu mês de estreia na França.
“Emmanuèle era bem próxima de mim e me mandou o livro assim que o lançou. Pensava já em vê-lo filmado, mas eu não queria filmar aquele universo. Era próximo demais dela para isso. Só que, depois que ela morreu, resolvi voltar àquela trama e reencontrar aquele relato sob uma nova perspectiva, buscando não a finitude em si, mas, a vida”, diz Ozon, que concorreu à Palma de Ouro com esse longa, ainda inédito comercialmente por aqui. “A morte entra aqui como uma ponte de reconciliação entre filha e pai. Eu tento falar de relações buscando momentos agradáveis. Como eu disse… as emoções variam de filme a film.
Por Rodrigo Fonseca