Eleições. No começo era o abuso, depois vieram regras, mas foi necessária enorme luta para aplicá-las. Mas aí o abuso, maléfico vírus, vai se transformando, inventa formas insidiosas, se dissimula, tenta se incorporar aos costumes, faz de tudo para parecer aceitável.
Não foi fácil construir a democracia brasileira, mesmo com suas eventuais deficiências. Na República Velha, só podiam votar os homens que tivessem alguma riqueza ou posição social. Entendia-se, então, que mulheres, despossuídos, analfabetos, religiosos e militares de baixa patente não deviam votar. Com isso, parcela enorme da população era excluída da cidadania. Mesmo entre os poderosos, conta a história que o registro dos votos era feito ao bel prazer da elite local, ao arrepio do conteúdo das urnas.
Muita água passou debaixo da ponte, superamos duas ditaduras, a de Getúlio, que terminou em 1945, e a militar de 1964 – 1985. As mulheres puderam votar a partir de 1932. E veio, afinal, a Constituição de 1988 que, em tese, reflete perfeitamente o ideal democrático. A Carta declara que todos são iguais perante a lei. Pela primeira vez afirma que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Que somos um Estado Democrático de Direito onde todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.
Aí começa o nó da representação. O poder é muito saboroso, e a tentação de corromper o processo eleitoral, além de muito grande, tem larga tradição na América Latina. Muitos querem o governo, alguns até com boas intenções, têm um projeto para o país ou se dispõem a participar da vida pública. Outros tantos, entretanto, ainda veem os cargos eletivos como emprego, fonte de riqueza e de status.
Na corrida pelo poder, há todo tipo de gente, com motivos de diversas ordens, nem sempre nobres. É preciso organizar essa corrida, tentar penalizar os vigaristas. Sem uma rígida disciplina democrática, é impossível assegurar o mínimo da igualdade que a democracia exige.
É a própria Constituição de 1988 que prevê a perda do mandato eletivo quando conquistado mediante “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”. Sua aplicação nem sempre é fácil, mas vários governadores e prefeitos já perderam o mandato com base nesse artigo.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em decisão recente, entendeu que não havia prova suficiente de que o uso de disparos na internet pela chapa vencedora em 2018 tivesse desequilibrado o resultado do pleito presidencial. Mas lançou séria advertência, nas próximas eleições de 2022 vai prestar especial atenção ao abuso nos métodos digitais de conquista do eleitor.
Esse é um dos abusos entre os vários que podem corromper a escolha do eleitorado. Como também o uso da máquina pública, ainda mais depois da malfadada introdução da reeleição. A lei eleitoral prevê expressamente uma série de condutas vedadas aos agentes públicos, tentando evitar a quebra de equilíbrio na disputa. Sabe-se, porém, que muitos eleitos tentam dar um jeitinho para se perpetuarem no poder.
A Justiça Eleitoral considera abuso de poder o excesso de gastos na propaganda institucional que beneficie o candidato, a contratação de servidores temporários sem concurso nas vésperas do pleito, a distribuição de benesses em festividades, contratação de shows, colocação de nome na publicidade institucional, presença do governante em inauguração de obra pública no período vedado, distribuição de material de construção, uso da estrutura da administração para favorecer candidatura etc.
Ao lado dessa corrupção lato senso, existe também o crime de corrupção eleitoral propriamente dita, que consiste em dar, oferecer, solicitar ou receber dinheiro ou qualquer vantagem em troca de voto. Hoje, a fiscalização da Justiça Eleitoral é maior, mas havia no Brasil um verdadeiro mercado do voto. Quem tinha dinheiro para gastar, dava ou prometia uma variedade enorme de vantagens para comprar o eleitor Os casos julgados são incontáveis.
Não há covardia maior do que aproveitar-se do estado de pobreza da imensa maioria da população para propor uma esmola em troca do voto. Em primeiro lugar, é obviamente crime o pagamento em dinheiro. Houve o caso de uma pequena cidade em que dois terços da população foram contratados para “ajudar na campanha” de determinado candidato!
A Justiça já puniu como corrupção – e deve continuar punindo – a promessa de cargo ou emprego público, a promessa ou entrega de sapato, dentadura, bicicleta, consulta médica, cirurgia, material de construção, combustível, material escolar, cancelamento de multa de trânsito etc. A imaginação do malfeitor não encontra limites.
A luta contra a corrupção nas eleições é de todos nós. Olho vivo, ou a democracia vai mesmo para o brejo.
*Eduardo Muylaert é advogado e escritor. Conselheiro do IASP e do IDDD. Pós-graduado em Paris, foi professor da PUC/SP, secretário de Justiça e Segurança Pública, e integrou a primeira Comissão de Ética do Estado de São Paulo. Publicou, pela editora Contexto, Direito no Cotidiano (2020) e participou da obra Brasil: o futuro que queremos (2018)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Por Eduardo Muylaert