Ele conta como acabou se envolvendo com outros espetáculos do ‘Satyros’ e foi incorporado ao grupo
O revólver continua nas mãos de Alex de Jesus. Desta vez, ele não passa de um objeto cenográfico, incapaz de ferir alguém. Mas, há 10 anos, quando ainda era um menino de 13, o cano, o berro, a ferramenta em questão não tinha nenhuma função lúdica. A vida dele nunca foi de festim.
Na véspera da reestreia do espetáculo Pessoas Brutas, Alex recebeu a reportagem do Estadão no Espaço Satyros, na Praça Roosevelt, região central de São Paulo. No teatro vazio, ele narrou a própria história – o caminho percorrido entre o dia em que saiu algemado da escola até sua descoberta como artista e sua formação como advogado.
Os pais de Alex vieram da Bahia e se instalaram na comunidade Filhos da Terra, na zona norte. O sustento da família vinha do trabalho do pai como pedreiro e da mãe como empregada doméstica. Em uma madrugada de 2011, Alex e o irmão mais velho foram acordados pela água da chuva que invadia o quarto em que dormiam. “Perdemos quase tudo. Neste dia, tive um estalo: eu precisava ganhar algum dinheiro para ajudar meus pais”, falou.
Aos 12 anos, arrumou um “trampo” de pedreiro (ajudando o pai), depois em shopping e, finalmente, como cobrador em lotação. “Eu ficava na janela da perua gritando o itinerário. No fim do dia, dava uns 30 contos”, lembrou. Logo, Alex entendeu que aquilo não era o suficiente para ajudar sua família.
“Na quebrada, a gente conhece todo mundo. Sempre andei com os mais velhos. Cresci junto dos bandidos mais considerados da época”, contou Alex. Esse “conhecimento” fez com que os irmãos começassem a trabalhar como leva e traz de dinheiro para um chefão da região. A função, como é de se imaginar, exigia algum grau de proteção. “Meu irmão conseguiu o revólver. A gente não usava para roubar. Era proteção.”
O tal revólver era levado para todos os cantos – inclusive para a escola. Até que, um dia, a presença de uma arma em sala de aula foi denunciada. A polícia fez uma revista minuciosa em todos os alunos e acabou encontrando o que procurava dentro da mochila de Alex. “Saí da escola algemado e de camburão”, lembrou.
Alex foi encaminhado para o 73.ª DP (Jaçanã) e depois transferido para a unidade do Belenzinho da Fundação Casa. A passagem foi breve, mas serviu para que ele entendesse a tristeza da mãe – que sempre sonhou em ver o filho “doutor”. Além disso, durante sua audiência de soltura outra coisa capturou a atenção de Alex. “Aqueles homens de terno, os advogados. Aquelas figuram me marcaram”, disse.
Em liberdade assistida, Alex foi fazer serviços comunitários – primeiro perto da escola onde tinha sido preso; depois, na Fábrica de Cultura do Jaçanã. Ao mesmo tempo, voltou a estudar. “Em uma das escolas, a gente precisava fazer trabalhos extraclasse. Foi quando me sugeriram fazer teatro. Faltava gente, não tinham homens. Eu, que nunca tinha visto uma peça e nem sabia direito o que era teatro, acabei aceitando. A peça era As Bacantes e eu fazia Dionísio”, lembra.
O espetáculo escolar foi parar no festival Satyrianas (organizado pelo grupo Satyros). A performance de Alex fez com que ele fosse convidado para o Satyros Teens (projeto teatral com alunos de 14 a 17 anos da rede pública). “Minha primeira reação foi falar que não, que meu negócio não era teatro. Só que me contaram sobre a bolsa de R$ 600. Topei na hora.”
O dinheiro serviu para que Alex começasse a pagar a mensalidade do curso de Direito. Ele acabou se envolvendo com outros espetáculos do próprio Satyros e incorporado à companhia. A história poderia terminar aqui – mas a grana ainda não era o suficiente e Alex decidiu retomar seus velhos contatos: começou a vender drogas. Neste período, tomou outra decisão ruim. “Resolvi experimentar. Aí já era. Todo dinheiro que eu ganhava ia para o vício.” O resultado foi uma convulsão que o fez apagar. “Só acordei no hospital, com minha mãe chorando ao lado.”
Neste dia, fez uma promessa: realizaria o sonho da mãe de ter, enfim, um filho doutor. Depois do susto e do juramento, retomou o pé da vida, passou a frequentar reuniões dos Narcóticos Anônimos, largou o tráfico e voltou às aulas na faculdade e ao teatro.
E foi em um debate após uma apresentação que um homem perguntou se Alex queria viver de arte. “Quero viver de arte, mas preciso pagar as contas. Estou no terceiro ano de Direito e procurando estágio na área”, respondeu. Na saída, o homem entregou-lhe um cartão. “Me ligue amanhã”, disse.
Mesmo desconfiado, Alex ligou. Conseguiu uma entrevista em um grande escritório de advocacia na Avenida Faria Lima. “Quando cheguei, já sabiam da minha passagem pela Fundação Casa. Também fui honesto dizendo que não sabia nem mexer em computador, mas tinha muita vontade de aprender.”
Alex foi admitido. A partir daí, começou a levar as duas paixões, o teatro e o Direito. Duas semanas atrás, no 20 de janeiro, foi aprovado no exame da OAB. “Minha mãe estava na laje de casa quando dei a notícia. Nos abraçamos e choramos por uns 10 minutos”, contou. No trabalho, foi admitido como associado do escritório.
Como advogado, quer desenvolver trabalhos para a comunidade em que mora, na zona norte. Como ator, está em Pessoas Brutas e, em breve, estará na segunda temporada da série Pico da Neblina (HBO). Mas Alex ainda tem um sonho. “Quero investigar outros lados da minha personalidade, quero que meus próximos trabalhos tirem a arma da minha mão”, concluiu.
Por Gilberto Amendola