Dois fatos recentes, ambos noticiados no mesmo dia pelos jornais, deixam claro que o futuro das instituições, especialmente dos tribunais superiores do Poder Judiciário, continua sendo ameaçado, pondo em risco o sistema de freios e contrapesos em vigor desde o retorno do país à democracia.
O primeiro fato foi a afirmação do presidente Jair Bolsonaro de que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Edson Fachin, seria “leninista” e “trotskista” por ter votado a favor da atualização do marco temporal que estabelece que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam em 5 de outubro de 1988 – dia em que a Constituição foi promulgada. Sob a justificativa de que a atualização desse marco inviabilizará o agronegócio no país, Bolsonaro foi tão enfático quanto patético. “Eu vou ter que tomar uma decisão”, disse ele, esquecendo-se de que, no Estado democrático Direito, decisão judicial transitada em julgado simplesmente tem de ser cumprida – e ponto final.
O segundo fato foi o “vazamento” da fala do chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, na sessão de formatura de um curso para agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). No mesmo tom ameaçador de seu superior, o Conselheiro Acácio do bolsonarismo disse que precisa “tomar dois Lexotan na veia por dia para não levar o presidente a tomar uma atitude mais drástica em relação às decisões que são tomadas por esse STF”. Não foi a primeira vez que falou algo tão estapafúrdio, do ponto de vista institucional. Há quase dois anos, esse general reformado ameaçou a corte com “consequências imprevisíveis” caso ela determinasse, na época, a apreensão do celular do seu superior imediato.
Que as duas falas estão interconectadas e são tolas e repulsivas, entreabrindo uma visão de mundo estreita, provinciana e avessa ao império da lei e à segurança do direito, isso é notório. A dúvida é saber se o presidente e seu subordinado representam o pensamento dominante no alto oficialato das Forças Armadas. Caso a resposta seja afirmativa, ficará evidenciado que, apesar de a ditadura ter terminado em 1985 e uma nova Constituição ter sido promulgada em 1988, as academias das corporações militares continuam falhando. Em primeiro lugar, na formação cívica e institucional de seus oficiais, como se vê pelos absurdos que esses dois personagens vêm afirmando. E, em segundo lugar, por não deter a pretensão desse pessoal de ser agraciado pelo atual governo com cargos na máquina administrativa para os quais não têm conhecimento experiência necessários.
Já no caso de a resposta ser negativa, ficará claro que os critérios de seleção, formação profissional e treinamento dessas academias parecem falhos. O que explica a entrada, na década de 1970, de um cadete disfuncional, intempestivo e inconsequente que só não foi formalmente expulso do Exército por acomodação corporativa e que se valeu da reforma na patente de capitão para ser um aventureiro político, atuando como sindicalista do baixo clero militar?
Infelizmente, esses dois acontecimentos intimidatórios e institucionalmente irresponsáveis e preocupantes resultam do atraso do país na construção da ideia de cidadania e de um projeto de nação. Essa constatação não é nova. Como importantes historiadores têm mostrado há décadas, acontecimentos como esses decorrem do fato de que as mudanças políticas e institucionais no Brasil foram realizadas sem alterar as bases da sociedade, criando problemas tão graves quanto os que tentaram resolver. Um desses problemas é a insistência das corporações militares em se arvorarem como uma instituição superior, soi disant integradas por patriotas que se consideram os únicos autorizados a vestir as cores nacionais e os mais preparados para determinar os destinos da Nação, independentemente da ordem constitucional.
Decorre dessa ideia de instituição “superior” o entendimento de que ela deteria um “poder moderador”, ficando acima do império da lei e das instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal. A pretensão é fruto dessa autoglorificação alienada e ignara das corporações militares, que foi forjada desde o início da República. Como afirma o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, tal pretensão resulta do “pecado original da República”, que foi proclamada em 1889 sem participação popular, sem uma revolução. Em Os bestializados, um de seus livros mais conhecidos, lançado em 1987, José Murilo analisa a atitude da população diante do poder, perplexa com o advento, da noite para o dia, do novo regime. Como a exclusão do “povo” da política, durante o século 19 e no decorrer do século 20, resultou em manifestações fora dos espaços tradicionais da ação partidária, não houve assim pressões para que o sistema de representação política e as práticas eleitorais fossem modificados após a proclamação – conclui.
É por isso que, da independência ao Império e daí à República, jamais houve governos verdadeiramente representativos. A própria Proclamação da República, por exemplo, não passou de uma simples intervenção militar. “A República brasileira é, na verdade, fruto de um golpe, origem que viciou o regime republicano desde seu início. A intervenção militar tornou-se, com isso, um modelo, quase uma norma recorrente ao longo da República. Esta origem criou entre os militares a ideia de são os pais da República. Que eles são os responsáveis pela República e herdaram o direito, como corporação, de intervir na vida política quando assim o desejarem”, afirmou José Murilo numa entrevista instigante e atualizadíssima que concedeu ao antigo Jornal do Brasil em 5 de novembro de 1989, por ocasião do primeiro centenário da República. É por esse motivo que o Brasil se tornou “esta confusão que conhecemos”, com “um destino traumático, sujeito a instabilidades e a golpes” por parte de um “poder desestabilizador” – disse ele.
A análise histórica de José Murilo, feita não só em Os bestializados, mas, igualmente, em Forças Armadas e Política no Brasil, lançado em 2015 e reeditado em 2019 com o acréscimo de um capítulo com um título sugestivo, “Uma república tutelada”, ajuda a compreender – mas não a aceitar – os rompantes autocráticos de um capitão reformado que chegou acidentalmente à presidência da República e as afrontas ao Supremo Tribunal Federal feitas por seu Conselheiro Acácio de pijama. Ambos, além de despreparados, são dirigentes grotescos e voluntariosos que não ascenderam ao poder por suas respectivas biografias. Só chegaram onde estão porque, em decorrência de diferentes fatores históricos, como a persistente desigualdade social que sempre travou a formação da cidadania nacional, o Brasil até hoje não conseguiu criar um antídoto contra a bestialização republicana.
Por José Eduardo Faria