Como de sabença, a Lei Federal nº 14.230, de outubro de 2021, trouxe expressivas alterações no sistema legislativo de combate à improbidade administrativa, impondo profundas e sensíveis reformas ao arcabouço traçado a partir do art. 37, § 4º, da Constituição da República e sedimentado por intermédio da Lei nº 8.429/92.
A despeito de pechas de inconstitucionalidade, objeto de variegados estudos e que, por certo, irão desaguar junto ao Supremo Tribunal Federal através de instrumentos processuais de controle direto, chama atenção a circunstância de que o novel texto legislativo, retrocedendo também no ponto em relação ao anterior, suprimiu a legitimidade ativa dos órgãos públicos lesados para o aforamento da demanda, jungindo-a exclusivamente ao Ministério Público.
As perguntas que surgem são as seguintes: a privatividade da legitimação ativa vem em efetivo prestígio ao Ministério Público? E, mais relevante sob o enfoque jurídico, poderia o texto legislativo suprimir a legitimidade concorrente, tal como posta na redação pioneira do art. 17 da Lei Federal nº 8.429/92?
Almeja o vertente ensaio, que consubstancia livre-pensar, despido de rigor científico, lançar luzes tendentes a colaborar para a resposta a ditas indagações.
É possível reconhecer-se a legitimidade privativa do Ministério Público?
Ao tracejar as funções institucionais do Ministério Público por intermédio de seu art. 129, o qual especifica, exemplificativamente, desdobramentos do comando maior advindo do art. 127, a Constituição da República houve por bem carrear-lhe legitimação privativa para a propositura da ação penal pública, em seu inciso I.
Ao reverso, ao atribuir-lhe a tutela do patrimônio público, social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, o inciso III do art. 129 deliberou não utilizar o vocábulo privativamente, mostrando, a propósito, notória distinção entre a tutela específica e aquela inerente aos mecanismos procedimentais de natureza penal.
Dita distinção, obviamente, não pode ser abstraída pelo legislador ordinário: não se pode alvitrar, em qualquer elucubração, que o Texto Maior simplesmente homiziou o vocábulo citado em seu inciso III, de sorte a concluir-se que nada obstaria fosse a Constituição interpretada de forma sistêmica, de sorte a propiciar a ilação de que o ordenamento jurídico subordinado poderia, ao talante do legislador, instituir hipótese de legitimação privativa do Ministério Público para a tutela de bens jurídicos metaindividuais indisponíveis na seara extrapenal.
Isso tendo em conta não apenas a óbvia distinção traçada pelo Texto Maior, como, de igual sorte, a própria vocação do Estado Brasileiro, constitucionalmente imposta, de resguardo e assecuração dos nominados direitos fundamentais, dentre os quais assentada, sem titubeios, a tutela do patrimônio público, ensejadora de repulsa aos atos de improbidade administrativa.
E a busca da proteção de valores socialmente tão caros deve, à evidência, pautar-se por ampliação no quadro dos legitimados ativos para alcançar, no mínimo, as Pessoas Políticas e os órgãos da administração direta e indireta que as integram, sob pena de amesquinhamento do sistema protetivo, inclusive pela absoluta inviabilidade de proteção ao patrimônio público por parte dos entes federativos Municípios, que não possuem, em sua estrutura ampla, instituição nos moldes do Ministério Público.
Trata-se, pois, de evidente amesquinhamento do Poder do Estado de exercer a tutela de seu patrimônio e de seus valores fundantes, traçados, entre outros dispositivos, pelo art. 37 caput da Constituição Federal, o que fere a lógica trazida pela Lei Maior, além de impor aos órgãos públicos indevida e injustificada limitação no exercício de poder-dever como abaixo cuidaremos de abordar.
No tópico em análise, no entanto, impende tratarmos da viabilidade de conferir-se legitimação privativa ao Ministério Público para a tutela da probidade administrativa.
E, a nosso sentir, ela não se mostra possível à luz da regra aberta que decorre do art. 129, III, da Carta de Princípios, mormente quando em cotejo com o respectivo inciso I, assim como em virtude de atribuições indeclináveis do Estado, igualmente advindas do Texto Maior, das quais trataremos no capítulo seguinte.
Certo que o art. 129, III, da Constituição Federal refere-se à “ação civil pública”. Certo, igualmente, que ao elaborar a recente Lei nº 14.230/21, o legislador referiu que a ação por ato de improbidade administrativa não é uma “ação civil pública”, podendo nesta converter-se por decisão judicial na hipótese consagrada no § 16 do art. 17 da Lei nº 8.429/92.
Tal hipótese pressupõe a aferição judicial acerca do descabimento da imposição das sanções por ato de improbidade administrativa, sem embargo da necessidade de reparação de danos causados ao erário, o que se afere, sobremaneira, em situações em que a prescrição venha a incidir na espécie, sem poder alcançar, no entanto, o ressarcimento aos cofres públicos, por conta da regra inserta no art. 37, § 5º, da Constituição da República.
Ao realizar dita distinção, o legislador ordinário retoma discussão vetusta e suplantada na seara dos Tribunais Superiores, confundindo institutos que são absolutamente diversos entre si: sistema processual e nome do processo.
E o faz com o inequívoco escopo de segregar a espécie processual hoje trazida pela Lei nº 8.429/92 da abrangência do microssistema das ações coletivas, formado, em sua base, pela Lei nº 7.347/85 vista em compasso com a parte processual do Código de Defesa do Consumidor, donde resulta inevitável o reconhecimento, com esteio no art. 129, III, da Magna Carta, de que a legitimação ativa é sempre concorrente (art. 5º da LACP e art. 82 do CDC).
Deveras, de há muito sustentamos que a ação civil pública não é espécime processual – mas um sistema procedimental, que realiza as adaptações necessárias na estrutura processual civil comum para que possa ser realizada a tutela dos nominados interesses metaindividuais, suplantando óbices como a forma de legitimação ativa e a limitação dos efeitos da coisa julgada tal como postos no Código de Processo Civil.
Em outras palavras, não existe o processo de ação civil pública: existe, sim, a incidência de mecanismos procedimentais diferenciados sobre a estrutura básica do processo civil tradicional, sem os quais a tutela dos interesses difusos e coletivos não se faria possível.
Nessa seara, a expressão “ação civil pública” não indica tipo de processo – mas a incidência, sobre quaisquer dos ritos procedimentais insertos no CPC ou em lei processual extravagante, de regras próprias, advindas do microssistema da tutela coletiva, aptas e indispensáveis para a defesa dos interesses metaindividuais, que são firmadas em observância ao comando da inafastabilidade da jurisdição, trazido pelo art. 5º, XXXV, da Carta de Princípios.
Logo, ação civil pública é um sistema processual – e não um tipo de processo –, circunstância ignorada pelo legislador ao elaborar o novel texto de nº 14.230/21.
Identificar-se um processo como sendo ação civil pública não se faz pela atribuição do nome respectivo pelo autor da demanda: faz-se tendo em conta a qualidade do sujeito ativo (que atua de forma anômala, assim entendida tanto a legitimação autônoma para a condução do processo como a extraordinária, para não ingressarmos em desnecessário embate doutrinário a propósito), assim como pela natureza metaindividual do objeto cuja tutela é almejada na demanda.
Em outras palavras, qualquer processo (ou rito processual) será considerado ação civil pública desde que proposto por algum dos legitimados que constam do rol inserto no art. 5º da Lei Federal nº 7.347/85 e que tenha por finalidade a defesa de interesses difusos ou coletivos. Nesta seara, as próprias ações diretas de controle de constitucionalidade são, estruturalmente, ações civis públicas, pese tenham nomes processuais próprios tracejados pela Constituição Federal.
Nessa toada, a distinção feita pela Lei nº 14.230/21 é, além de tecnicamente incorreta, absolutamente irrelevante, pois, em face da qualidade do legitimado ativo e do objeto tutelado (patrimônio público em acepção ampla), trata-se efetivamente de demanda sujeita ao sistema processual nominado de ação civil pública, apta a ensejar a incidência do regramento geral do microssistema da tutela coletiva, inclusive no que pertine à concorrência da legitimidade ativa, ainda que mais restrita em face do cotejo entre a redação original do art. 17 da Lei nº 8.429/92 e do art. 5º da LACP.
E o microssistema não tolera legitimação exclusiva, mesmo em respeito ao já citado art. 129, III, da Magna Carta.
Outrossim, abstraídas tais questões, de índole jurídica, impende destacar que a legitimação privativa do Ministério Público, antes de demonstrar prestígio à instituição, nos parece autêntico instrumento de exposição negativa para o Parquet.
Deveras, sobejamente conhecida a circunstância de que a Lei nº 14.230/21 veio com o notório espírito de dificultar – e em muito – a incidência do sistema repressivo constante da Lei nº 8.429/92.
Previsões tais como a da necessidade de aferição de dolo específico, de afrouxamento e da limitação na descrição de atos de improbidade administrativa (com a retirada da amplitude anterior, notadamente daquela trazida pelo art. 11), de prazos prescricionais bem mais lenientes (inclusive com a previsão da abominável prescrição intercorrente, que incide a despeito da inércia do autor), da previsão de que os princípios constitucionais do direito sancionatório deverão ser observados (gerando a equivocada visão da incidência, na espécie, de princípios constitucionais de direito penal e processual penal), mostram, de forma inexorável, o desiderato do legislador: literalmente o Ministério Público foi levado ao embate, dele porém sendo retirados mecanismos imprescindíveis para que o confronto possa surgir ao menos minimamente justo.
Em outras palavras, deu-se ao Ministério Público uma legitimação privativa, sem que os instrumentos mínimos necessários à sua eficaz atuação tenham sido, ao menos, preservados.
E, nessa cepa, qualquer insucesso no combate a agentes ímprobos seguramente será carreado à Instituição, resguardando-se a Pessoa Política de tal dissabor na medida em que impedida de ir ao Judiciário em nome próprio…
Verdadeiro disparate!
Poderia o novel texto legislativo suprimir a legitimidade ativa dos órgãos públicos lesados?
A par das questões acima aventadas, que já denotam ser inviável, no sistema da ação civil pública, a previsão de legitimidade ativa privativa, há outro ponto de extrema relevância que deve militar em prol do reconhecimento de que não se pode cercear o acesso ao Judiciário, para a defesa do patrimônio público (gênero no qual, obviamente, está inserida a probidade administrativa), do próprio órgão lesado, sob pena de violação ao brocardo inserto no art. 5º, XXXV, do Texto Maior.
De fato, pela redação atual da Lei nº 8.429/92, o próprio lesado deixa de possuir instrumental para o resguardo dos princípios constitucionais que lhe são inerentes – dentre os quais destacam-se os do art. 37 caput do Texto Maior – em evidente cerceamento de seu direito-dever de agir em sua própria defesa; o Poder Público deixa de ser autor, para ser mero fomentador da atuação do Ministério Público, de quem cria evidente dependência para o resguardo de seus mais altos valores.
De sabença que na estrutura do Direito Administrativo vige o princípio da autotutela, valor ínsito à assecuração da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência.
A conhecida Súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal comete à Administração Pública o direito (que, em verdade, assume vezos de dever, em face da natureza difusa do bem jurídico envolvido) de rever seus próprios atos, ainda que de ofício, quando eivados de vícios de legalidade (visto o vocábulo em acepção ampla, para abarcar atos praticados com desvio de poder ou de finalidade) ou, mesmo, sob as lentes da conveniência e da oportunidade.
Cristalino que qualquer ato ímprobo possui vezos de ilegalidade – formal ou substancial –, de sorte que a Administração Pública deve contar com eficazes mecanismos internos para o seu controle e repressão, os quais passam pela autotutela.
Porém, à evidência, os mecanismos de controle interno derivados do princípio acima delineado nem sempre vão apresentar a eficácia que deles se espera, donde imprescindível, em prestígio à inafastabilidade da jurisdição, a existência de mecanismos judiciais de proteção à higidez do erário e dos valores inerentes à Administração Pública.
É em tal contexto que deve ser aferida a legitimidade ativa dos órgãos públicos para aviar demandas advindas da prática de atos de improbidade administrativa, as quais têm por escopo o resguardo dos valores mais caros alusivos à gestão da coisa pública.
Em outras palavras, a materialização dos princípios administrativos consagrados pelo art. 37 caput da Constituição Federal, além de outros esparsos pelo Texto Maior, explícitos ou implícitos (como o da autotutela), impõe a existência de um sistema procedimental de tutela, o qual não pode, em nenhuma circunstância, negar ao próprio lesado o direito (e, no caso do Estado, o verdadeiro dever) de ingressar na esfera jurisdicional em defesa de tais valores.
Relegar tal iniciativa exclusivamente a um terceiro (ainda que ao Ministério Público) importa em verdadeira negativa de controle, pelo Estado, de questões que se mostrem lesivas a seus interesses (quer próprios e ínsitos à Administração, quer relacionados ao cumprimento de seus misteres, de fomentador dos direitos fundamentais – interesse público primário e secundário), relegando o princípio da autotutela a âmbito estritamente administrativo quando sua verdadeira acepção é de cunho ampliativo, pois a tutela jurisdicional sempre lhe foi franqueada, por conta da inafastabilidade da jurisdição.
Em outras palavras, o princípio da autotutela confere ao Estado o direito de rever seus atos ainda que de ofício, potencializando o seu poder de controle para além daquele inerente ao estrito uso da via jurisdicional, inafastável por conta do art. 5º, XXXV, do Texto Maior.
Nessa toada, a Lei nº 14.230/21 vem em sentido diametralmente oposto àquele preconizado por indigitado princípio, ao negar o acesso do Órgão Público lesado ao Poder Judiciário para o resguardo de valores que o regem e instruem, o que viola frontalmente, segundo pensamos, o brocardo da inafastabilidade da jurisdição, além de atentar contra os valores consagrados pelo art. 37 caput, da Carta de Princípios, tolhendo do Estado o seu direito-dever do exercício da autotutela, limitando-o ao âmbito estritamente administrativo.
Conclusão.
Trata-se de abordagem preliminar acerca do tema, despida de maior conteúdo científico, inerente a artigos doutrinários.
Dele, no entanto, é possível aferir-se que a previsão de legitimidade ativa privativa ao Ministério Público para o resguardo do patrimônio público por intermédio dos instrumentos constantes da Lei Federal nº 8.429/92 enseja interpretação distorcida ao art. 129, III, da Constituição Federal, mormente quando o legislador ordinário, por motivos desconhecidos, confunde os institutos espécie de processo e sistema processual, com o intuito de ilaquear a exegese da expressão “ação civil pública” que consta do Texto Maior.
Outrossim, a inviabilidade trazida pela Lei nº 14.230/21 de que o órgão público lesado possa, ele próprio, exercer o controle da probidade administrativa na esfera jurisdicional nos parece ferir o art. 5º, XXXV, da Carta de Princípios, assim como o art. 37 do Texto Maior, através do indevido cerceamento do direito-dever do Estado de realizar o exercício de autotutela, que não pode estar limitado à seara administrativa, vez que também deve se mostrar apto a fomentar a propositura das demandas judiciais que se fizerem necessárias ao resguardo dos valores inerentes à Administração Pública.
Por Estadão