Talvez seja a hora de lidar com uma das toxinas estruturais mais devastadoras: somos ensinados a dividir não só a “boa música” do “popular” mas, pior, a qualificar o outro por aquilo que ele ouve
Anitta chegou a um topo que torna sua relevância, para muitos tão incômoda, algo inquestionável. Ela é hoje a mulher mais ouvida na principal plataforma de música do mundo, o que não se trata de uma bolha, não se explica só pelas estratégias de Tik Tok e não, não é a comprovação de que o mundo está às vésperas do fim. O fato é que, além de focada e ambiciosa, Anitta é boa, muito boa no que faz, e redefine a existência planetária de uma artista brasileira em 2022. Aos 28 anos, a garota da Zona Norte, filha de pai mineiro separado logo da mãe, uma artesã paraibana, moradora de uma casa “do tamanho de uma sala” em Honório Gurgel, bairro pelos lados de Marechal Hermes esquecido até pelos sambistas, decidiu que chegaria lá, no topo, e chegou.
Aceitar Anitta no país das excelências musicais, com pessoas ensinadas desde criança a dividir não só a “boa música” do “descartável” mas, pior, a qualificar o outro por aquilo que ele ouve, não é fácil. Um crítico que aceita Anitta é um profissional raso. Uma criança que canta Anitta é filha de pais irresponsáveis. Uma mulher que posta um vídeo no qual aparece em posição de flexão enquanto empina os glúteos e tenta rebolar, emulando o “el paso” de Envolver, é alguém a ter a amizade desfeita. Os ouvidos são tapados e as redes bloqueadas, mas o noticiário chega e lá está Anitta, como Roberto Carlos por foi décadas, onipresente, onipotente e em franco processo de expansão.
Então, talvez, seja preciso desconstruir a Anitta imaginária para se chegar a algum entendimento.
1. Anitta não é “produto de uma estratégia de mercado bem sucedida”. Não é. Ela está muito bem amparada e sabe com quem anda, mas não tem parâmetros à sua frente para seguir. Ou seja, Anitta faz o caminho, pela primeira vez, de uma artista pop brasileira com 60 milhões de seguidores no Instagram (ah, os números da nova ordem…) a entrar com tamanha força no impenetrável setor latino-americano. Isso é bem sério. Nenhum nome do sertanejo ou do pop romântico moderno conseguiu tal proeza com longevidade. O clipe de Envolver foi uma briga sua, não de um empresário ou de uma gravadora. Foi ela quem o dirigiu e apostou, apesar de contar com menor orçamento do que foi dispensado a Boys Don’t Cry, que daria certo depois de chamar a estrelada coreógrafa Aliya Janell Brinson e o modelo marroquino Ayoub. Ficou um arraso.
2. Anitta é “produto da hiperssexualização feminina”. Não é só, e aqui reside uma leitura misteriosa. Seu corpo exposto, flexionado e vigoroso, impositivo justamente por ser imperfeito, não se descola de uma “ideia de Anitta”, uma força que a protege da vulgaridade mais crua e a tira do alvo do feminismo que, talvez por isso, nunca a acusou de “reforçar a objetificação feminina”. Anitta tem um corpo que fala quando dança, decidido e dominador, nunca subserviente. É a mulher que pode fazer ou não fazer se não quiser, algo com o qual os homens do star system, mais uma vez, não estão acostumados.
3. “Anitta não canta bem e sua voz é afinada por processadores de estúdio”. Talvez, mas a má notícia aos detratores pode doer um pouco mais agora: não se faz mais artistas no pop planetário apenas com a voz. E mais: a voz natural no pop planetário não existe. Anitta tem um caminho vocal de crescimento desde o primeiro álbum de 2013, com o Show das Poderosas, até o single da explosão, Envolver, e provavelmente seu próximo álbum Girl From Rio. Mas o que se ouve aqui, a voz saindo de um tubo cheia de efeitos e distorções, não se trata mais de correção, mas de linguagem. E não importa mais se o cantor canta afinado ou não. Este recurso, já foi testado, é capaz de afinar até mesmo o latido de um cão.
A voz de Anitta ganha a parada em outra dimensão. A “ideia Anitta” se fortalece pelos posicionamentos políticos, pelas causas ambientais e pelas conquistas de classe. E assim, essa mulher que não podemos mais ignorar senta-se no sofá ao lado de Jimmy Fallon, canta com Snoopy Dogg, se prepara para uma apresentação no Coachella Festival e se torna a mulher mais ouvida no planeta na principal plataforma de música do mundo. A jornalista Claudia Assef já disse tudo: “Aceita mais que dói menos.”
Por Julio Maria