Por Katherine J. Wu
Ao longo de todos os territórios, géneros e profissões, o novo coronavírus infeta indiscriminadamente. A COVID-19 parece afetar as pessoas de forma omnipresente – incluindo as crianças que, apesar das esperançosas informações iniciais, não têm mais imunidade ao vírus. Os números mais recentes da China, onde o surto começou no ano passado, sugerem que os menores de 18 anos podem contrair o patógeno com taxas comparáveis às dos adultos.
Mas existem vestígios de uma clemência misteriosa: depois de infetadas, as crianças parecem ter menos propensão para adoecer gravemente, e mais de 90% dos casos pediátricos apresentam-se como moderados, ligeiros ou sem sintomas. Esta resiliência juvenil já foi observada anteriormente em doenças infecciosas, como na varicela.
Atualmente, os indivíduos com sintomas visíveis compõem a maior parte dos casos rastreados para o SARS-CoV-2, o vírus responsável pela pandemia. Muitas pessoas com sintomas ligeiros, ou assintomáticas, provavelmente não foram detetadas e, à medida que os testes a nível global aumentam, as taxas relacionadas com doenças graves nas crianças ainda se podem alterar.
No dia 24 de março, as autoridades de saúde pública do condado de Los Angeles relataram a morte de um adolescente, que se acredita ser o primeiro óbito de um menor relacionado com o coronavírus nos Estados Unidos. Ainda assim, os resultados dos testes iniciais dizem-nos que “é muito provável que as crianças sejam menos afetadas”, diz Eric Rubin, médico investigador de doenças infecciosas na Escola de Saúde Pública de Harvard e editor do New England Journal of Medicine.
Durante os surtos de SARS e MERS surgiu um padrão semelhante: estas duas doenças respiratórias graves, também provocadas por coronavírus, pareciam poupar grande parte das crianças. Os cientistas e médicos ainda têm muito para aprender sobre o novo vírus e sobre as defesas do nosso sistema imunitário contra o mesmo – mas compreender porque é que o SARS-CoV-2 é menos grave nas crianças pode ajudar os especialistas a descobrir novos modos para combater a propagação da doença.
“A forma de vencer esta batalha é compreender realmente a biologia e como reagimos ao vírus”, diz Gary Wing Kin Wong, pneumologista pediátrico na Universidade Chinesa de Hong Kong e autor de um estudo recente sobre a prevalência da COVID-19 nas crianças. “Depois, podemos enfrentar isto a todos os níveis.”
Equilíbrio delicado do sistema imunitário
Todas as doenças infecciosas desencadeiam uma guerra biológica no corpo – entre os micróbios nocivos e um potente exército de moléculas imunitárias. Sob as condições ideais, o sistema imunitário limpa o corpo de patógenos sem causar muitos danos colaterais nas células humanas saudáveis. Mas existem vários fatores que podem perturbar este equilíbrio delicado. Os sistemas imunitários enfraquecidos ou desgastados podem não conseguir obter uma resposta suficientemente robusta, permitindo aos germes invasores provocar estragos. Noutros casos, as reações imunitárias excessivamente zelosas podem provocar mais danos do que os próprios patógenos.
Os adultos podem sentir os efeitos da COVID-19 de forma mais agressiva do que as crianças, porque os seus sistemas imunitários não conseguem encontrar um meio termo entre uma resposta insuficiente e uma resposta excessiva, diz Rubin.
Os idosos, que até ao momento representam grande parte das mortes relacionadas com a COVID-19, podem estar numa situação mais precária porque o seu sistema imunitário começou a desvanecer. Ao contrário das crianças, os adultos também podem sofrer de condições subjacentes, como diabetes ou doenças cardíacas, que podem debilitar as suas capacidades de combate às doenças.
Um corpo envelhecido é muito parecido com “um carro que anda na estrada há mais de 15 anos – não está em boas condições”, diz Wong. “Quando um invasor aparece, consegue provocar uma destruição mais acelerada.”
Os sistemas imunitários demasiado imaturos também podem estar em risco, porque não tiveram tempo para desenvolver respostas a uma variedade de patógenos. Apesar de os casos de COVID-19 em bebés ainda serem pouco comuns, um estudo feito na China com 2.143 crianças (menores de 18 anos) diagnosticadas com a doença descobriu que a maioria dos casos graves, ou críticos, tinham 5 anos ou menos.
Porém, depois de alguns anos de idade, o sistema imunitário das crianças pode atingir uma espécie de estatuto correto – ganha força suficiente para manter uma infeção sob controlo e sem exageros. Nos adultos, muitos dos casos mais graves de COVID-19 parecem resultar de respostas imunitárias hiperativas, respostas que acabam por destruir células saudáveis juntamente com células infetadas, algo que pode ser menos comum nas crianças. Wong compara estes ataques imunitários indiscriminados ao envio de um batalhão de tanques para lidar com dois ladrões que estão a assaltar uma casa: “Acabamos por destruir a aldeia inteira.”
Quando uma exposição prévia é benéfica – ou prejudicial
O SARS-CoV-2 é um dos sete coronavírus conhecidos por infetarem humanos. Existem outros dois, responsáveis pela SARS e MERS, que também podem ser mortais; os restantes são relativamente benignos e na maioria dos casos provocam constipações ligeiras.
Kanta Subbarao, virologista e médica pediátrica no Instituto de Infeção e Imunidade Peter Doherty, em Melbourne, na Austrália, suspeita que a exposição prévia a coronavírus mais ligeiros pode desempenhar um papel na vantagem que as crianças têm em relação aos adultos. Nos ambientes dos pátios escolares, as crianças conseguem gerar de forma constante anticorpos para os patógenos mais fracos – e estes anticorpos podem ser versáteis o suficiente para combater o novo coronavírus.
Contudo, uma experiência prévia no combate a um coronavírus nem sempre é benéfica. Quando um patógeno invade o corpo, os anticorpos reconhecem características únicas desse micróbio em específico e prendem-se à sua superfície, desarmando-o, antes de o entregarem a um glóbulo branco que o destrói. Esta estratégia é muito eficaz quando os anticorpos têm um ajuste perfeito para um vírus. Mas quando estes mesmos anticorpos reconhecem apenas parcialmente um patógeno, podem falhar na sua incapacitação total. O vírus pode infetar os glóbulos brancos, facilitando a propagação da doença.
Este fenómeno, semelhante a um cavalo de Tróia, onde o sistema imunitário ajuda inadvertidamente um vírus a infetar células saudáveis, é conhecido por potencialização dependente de anticorpos (ADE). Já foi demonstrado que este processo acontece com o vírus Dengue e com o vírus Zika, e alguns estudos iniciais sugerem que pode acontecer o mesmo com os coronavírus.
Se for esse o caso, a ADE pode ajudar a explicar porque é que o novo coronavírus é mais mortífero nos adultos, cujos sistemas imunitários atacam mais drasticamente uma infeção. Mas os especialistas dizem que as evidências deste processo não são conclusivas. O SARS-CoV-2 também não parece ter uma predileção em específico pela infeção de glóbulos brancos, o subgrupo principal que os vírus que utilizam esta tática geralmente têm como alvo, diz Rubin.
Proteína chave na propagação de COVID-19
Porém, através da observação das células que o novo coronavírus tem como alvo, os cientistas desenvolveram outra teoria sobre as razões pelas quais a doença pode afetar os adultos de forma mais agressiva. Tal como acontece com o seu parente SARS-CoV-1 (que provoca a SARS), o SARS-CoV-2 inicia a infeção ao incidir numa proteína chamada ACE2. Esta proteína encontra-se nas superfícies das células de todo o corpo, mas sobretudo em partes específicas dos pulmões e no intestino delgado.
Alguns investigadores levantaram a hipótese de as células pulmonares das crianças poderem produzir menos – ou talvez até de formas diferentes – proteínas ACE2. Se assim for, esta peculiaridade no desenvolvimento das crianças pode afetar o vírus enquanto este se tenta propagar e infetar células.
Mas Rachel Graham, epidemiologista e virologista especializada em coronavírus na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, salienta que os coronavírus não precisam assim tanto da proteína ACE2 para se infiltrarem nas células – e menos proteína nem sempre é melhor. Por outro lado, uma das muitas funções da ACE2 envolve o aumento das nossas defesas contra vírus que atacam as vias respiratórias – desativa uma enzima que contribui para a destruição de tecido. Os estudos feitos em roedores também sugerem que os níveis de ACE2 diminuem com a idade, algo que, nos idosos, pode contribuir para um enfraquecimento na sua capacidade de combate a doenças respiratórias.
Fase inicial
Os investigadores ainda não sabem qual das teorias – se é que alguma está correta – pode explicar a aparente resiliência das crianças à COVID-19. “Creio que é um campo aberto a interpretações”, diz Rubin. “Nós simplesmente não sabemos.”
Existem diversas variáveis que não estão relacionadas com a idade que complicam ainda mais os problemas, como genética de uma pessoa, o ambiente local, a medicação e muito mais. “Cada um destes fatores pode ser parcialmente responsável pelo resultado final”, diz Wong. “Descortinar um sistema biológico é moroso.” Mas esta descoberta é crucial para conter a pandemia e, talvez, potenciais surtos no futuro.
“Este é o terceiro exemplo de um coronavírus animal que provoca doenças graves nos humanos”, diz Subbarao. “É muito importante conseguirmos compreender isto para nos podermos preparar de forma adequada para o futuro.” Subbarao acrescenta que, por enquanto, podemos ter algum conforto nos dados que revelam que as crianças não estão a adoecer com gravidade frequentemente. É algo que deve ser reconfortante para os pais.
No entanto, Subbarao e outros especialistas alertam que as pessoas com sintomas ligeiros, ou sem sintomas, podem disseminar o novo vírus a outras pessoas. E as crianças podem não estar particularmente em risco de morte devido a doenças graves, diz Wong, mas podem ser um fator importante na propagação da pandemia.
Os pais devem manter os seus filhos informados e devem incentivá-los a ter boas práticas de higiene, diz Graham. À medida que os infantários e as escolas encerram, as crianças reduzem o contacto umas com as outras – mas talvez ainda mais importante é restringir as interações das crianças com os seus familiares mais vulneráveis, como os avós.
Apesar de estas alterações no comportamento não serem fáceis, as crianças podem ser motivadas a agir dessa forma. As crianças “têm um instinto inato em relação à compaixão”, diz Maryam Abdullah, psicóloga do desenvolvimento e diretora do programa parental da Universidade da Califórnia, no Centro de Ciência de Berkeley. “Existe o mito de que as calamidades revelam o pior das pessoas. Mas vemos de forma repetida… crianças a quererem oferecer apoio e ajuda. E isso é algo a que, agora mais do que nunca, nos devemos agarrar.”