Por Forest Ray
Para quem pensa que o horário de verão é o maior obstáculo ao estado de alerta matinal, então talvez seja necessário considerar a ferrugem das folhas de café.
A ferrugem das folhas de café é a praga de maior impacto econômico a nível mundial na produção de café. Desde a década de 1980, os surtos ocasionais deste fungo afetaram a produção de café nas Américas, chegando por vezes a obrigar à duplicação ou até triplicação do seu preço. E o problema tem aumentado desde 2008, tal como os enormes recursos investidos na luta para o eliminar.
Agora, uma nova descoberta levanta uma possibilidade intrigante para controlar as pragas mais dispendiosas do café, e esta possibilidade vem dentro de uma pequena concha. De acordo com uma investigação feita recentemente pela Universidade do Michigan, os caracóis Bradybaena similaris consumem enormes quantidades de ferrugem de café, antes de a doença conseguir danificar a planta. Se deixarmos um caracol numa folha coberta de ferrugem, o caracol consegue capturar 30% do fungo em 24 horas.
Apesar de a ferrugem das folhas de café ter os seus próprios predadores e patógenos, os gastrópodes – caracóis e lesmas – nunca estiveram entre eles. Também existem algumas evidências de lesmas que comem outros tipos de fungos. E aparentemente esta é a primeira vez que se registaram caracóis Bradybaena similaris a mudar a sua dieta de plantas para fungos.
Porém, este potencial biocontrolo, uma tática de gestão de pragas através de outros organismos, tem os seus reveses. Os Bradybaena similaris são normalmente uma espécie invasora, e são em si uma praga para as colheitas. Mas os investigadores podem ter encontrado uma forma de manter a dieta dos caracóis focada na ferrugem do café.
Rasto alaranjado de salvação
Em 2016, Zachary Hajian-Forooshani, doutorando na Universidade do Michigan, e os seus orientadores, John Vandermeer e Ivette Perfecto, estavam a fazer investigações de campo, nas montanhas verdejantes de Porto Rico, quando viram pequenos trilhos alaranjados de excrementos de caracol na parte debaixo das folhas verdes de café. A cor do excremento combinava na perfeição com a ferrugem da folha de café.
Os investigadores ficaram curiosos e recolheram alguns caracóis Bradybaena similaris e outros caracóis nativos das Caraíbas – Bulimulus guadalupensis – que geralmente partilham as folhas de café entre si. A equipa deixou cada caracol em folhas com ferrugem num ambiente controlado de laboratório. Passadas 24 horas, apenas os Bradybaena similaris tinham eliminado a ferrugem da folha de café.
No ano seguinte, o grupo regressou à mesma plantação de café para fazer experiências adicionais. Quando estavam a recolher caracóis, repararam numa concentração enorme de Lecanicillium lecanii, um parasita fúngico e inimigo conhecido da ferrugem. Esta ocorrência em simultâneo levou a equipa a pensar se os Bradybaena similaris consumiam tanto a ferrugem fúngica como o seu patógeno, conhecido por “micoparasita”.
Mas decifrar esta relação a três é complicado. As folhas de café que têm mais manchas de ferrugem também têm mais micoparasitas de Lecanicillium lecanii. Desta forma, a dieta do caracol pode concentrar-se na ferrugem, e os Lecanicillium lecanii podem ser apenas espetadores, ou o caracol pode ter um apetite por ambos.
Para descortinar esta relação, a equipa recolheu folhas de café infetadas com ferrugem, mas desta vez incluiu algumas que também tinham os micoparasitas Lecanicillium lecanii. Mais uma vez, os caracóis ficaram com as folhas de café dentro de recipientes durante 24 horas.
A análise estatística dos hábitos alimentares dos caracóis revelou uma preferência significativa pelas folhas que continham o fungo da ferrugem e micoparasitas. Para além disso, os caracóis pareciam consumir mais ferrugem quando as folhas apresentavam uma abundância maior de micoparasitas.
Hajian-Forooshani explica que muitos organismos podem mudar o que fazem, e a forma como o fazem, quando se depararam com uma situação inédita.
“Dada a emergência espontânea de pragas pelo mundo inteiro, isto é geralmente aceite como uma realidade”, diz Hajian-Forooshani, “bem como as interações imprevistas entre espécies invasoras e os agentes de controlo biológico em comunidades ecológicas”.
Guildas de café
A relação entre a ferrugem da folha de café, os caracóis Bradybaena similaris e os micoparasitas Lecanicillium lecanii pode ser o exemplo de um fenómeno chamado “predação intraguilda”, onde um predador consome presas infetadas por um patógeno. As investigações teóricas sugerem que a predação intraguilda pode funcionar para evitar surtos de pragas.
A interação intraguilda pode estabilizar a população de micoparasitas, proporcionando um controlo melhorado ou a supressão a longo prazo da ferrugem do café, diz Stacy Philpott, professora na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, especializada em agroecologia, biodiversidade e biocontrolo de pragas de café.
“Este pode ser um papel ecológico importante desempenhado pelo caracol”, diz Philpott, que não integrou este estudo. O laboratório de Philpott já testemunhou uma intraguilda semelhante na proteção do café, através de uma relação entre formigas e dois tipos de insetos que comem plantas – afídios e insetos-escama.
Os afídios e os insetos-escama alimentam-se de plantas de café. As formigas, por sua vez, colhem o açúcar destes insetos e protegem-nos de outros predadores. Embora isto pareça mau para o café, e apesar de os agricultores acreditarem muitas vezes que estes insetos são nocivos, as formigas costumam ser agressivas com outros herbívoros que são ainda mais prejudiciais, resultando num benefício para a planta.
A ironia de ter caracóis Bradybaena similaris a fornecer um serviço agrícola, quando comem a ferrugem das folhas de café, é a de que o próprio caracol é considerado uma praga agrícola que devora culturas de citrinos, videiras e legumes por todo o mundo. Por este motivo, entre outros, os investigadores que foram entrevistados para este artigo recomendam muita cautela no uso destes caracóis invasores enquanto agentes biológicos para o controlo de pragas.
Atualmente, ainda não se sabe o que estes caracóis podem oferecer aos ecossistemas. Por exemplo, o caracol come os microparasitas e a ferrugem, mas o que acontece se os consumir em excesso? Será que pode permitir à ferrugem crescer mais depressa e em áreas maiores do que antigamente, desestabilizando assim o ecossistema da plantação de café?
“As abordagens clássicas ao controlo de pragas costumam falhar na compreensão desta complexidade, provocando desastres naturais enormes”, diz Estelí Jiménez-Soto, especialista em agroecologia na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, cujo trabalho se concentra geralmente nas medidas de biocontrole e café. E também não se sabe se esta predação intraguilda pode ser aplicável como biocontrole em Porto Rico e não só.
Hajian-Forooshani diz que as futuras investigações de campo vão ser feitas de forma a perceber qual é a difusão do consumo de ferrugem de café pelos gastrópodes na ilha e ao longo da América Latina.
Durante a sua última visita a Porto Rico, os investigadores repararam que outras lesmas, ainda não identificadas, tinham dentro de si o que pareciam ser esporos de ferrugem das folhas de café, e que também deixavam excrementos alaranjados. É possível que a ferrugem de café esteja a ser consumida em maior número pelos gastrópodes do que se pensava, e este fenômeno pode simplesmente ter escapado à observação científica até agora.
Outra questão importante passa por saber se os esporos de ferrugem consumidos pelos caracóis continuam a ter viabilidade depois de excretados. Se os esporos conseguirem sobreviver, a predação dos caracóis pode não oferecer grandes benefícios aos cafeicultores (e a quem gosta de beber café).
Mas se esta descoberta resultar numa forma viável de controlo biológico de pragas, será certamente bem-vinda. O outros métodos de controlo da ferrugem estão constantemente a ser ajustados para acompanharem a resistência do fungo aos pesticidas e fungicidas. É aí que os caracóis podem ter uma vantagem.
“É difícil desenvolver algum tipo de resistência a ser-se comido”, diz Hajian-Forooshani.