Em fevereiro de 2019, Molly Cassidy estudava para o exame da ordem dos advogados do estado do Arizona quando sentiu uma dor terrível no ouvido. A dor acabou irradiando para a mandíbula, o que a levou a descobrir um caroço sob a língua. “Vários médicos me disseram que a causa poderia ser estresse, porque eu estava estudando para o exame da ordem e tinha um filho de 10 meses”, lembra Cassidy, que também é doutora em Educação. Ela continuou a buscar outras opiniões médicas e descobriu que tinha uma forma agressiva de câncer de cabeça e pescoço, que exigia tratamento intensivo.
Após os médicos removerem parte de sua língua e 35 gânglios linfáticos, Cassidy fez 35 sessões de radioterapia, simultaneamente com três ciclos de quimioterapia. Dez dias após o término do tratamento, Cassidy notou um caroço semelhante a uma bola de gude em sua clavícula. O câncer havia voltado — e com força total: espalhou-se pelo pescoço e atingiu os pulmões. “Naquela altura eu realmente estava sem opções, porque os outros tratamentos não tinham funcionado”, recorda Cassidy, que mora em Tucson e agora está com 38 anos. “No meio do ano de 2019, disseram-me que meu câncer era muito grave e que eu deveria deixar minha vida em ordem. Cheguei até a planejar meu funeral.”
Quando o tumor da clavícula foi removido, os médicos disseram que ela poderia ser uma boa candidata para participar de um ensaio clínico no Centro de Tratamento de Câncer da Universidade do Arizona, para testar o uso de uma vacina de RNAm (ácido ribonucleico mensageiro) — tecnologia semelhante à utilizada nas vacinas contra a covid-19 desenvolvidas pela Pfizer e Moderna — em conjunto com um medicamento de imunoterapia utilizado no tratamento de câncer colorretal e de cabeça e pescoço. Embora as vacinas contra a covid-19 sejam preventivas, as vacinas de RNAm para o tratamento de câncer são terapêuticas, e Cassidy aproveitou a oportunidade para participar do ensaio. “Eu estava na hora e no lugar certos para participar do ensaio clínico”, ela conta.
Quando as pessoas começaram a ouvir falar sobre as vacinas contra a covid-19 desenvolvidas pela Pfizer-BioNTech e pela Moderna, a tecnologia de RNAm por trás delas parecia ficção científica. Mas, embora a abordagem do RNAm pareça revolucionária, pesquisadores começaram a desenvolver vacinas utilizando RNAm muito antes do surgimento da covid-19, para combater câncer e doenças autoimunes como esclerose múltipla, e para proteger contra doenças infecciosas, como o vírus sincicial respiratório. “Não é uma ideia nova: o que a covid-19 nos mostrou é que as vacinas de RNAm podem ser uma tecnologia eficaz e segura para milhões de pessoas”, afirma Daniel Anderson, chefe da área de nanoterapia e biomateriais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e membro do Instituto Koch de Pesquisa Integrativa sobre Câncer.
Atualmente, os ensaios clínicos de fase um e dois estão recrutando participantes ou avaliando a eficácia, tolerabilidade e segurança das vacinas terapêuticas de RNAm para tratar várias formas de câncer. Os tipos incluem melanoma, câncer de pulmão de células não pequenas, câncer gastrointestinal, câncer de mama, ovário e pâncreas, entre outros.
“Uma das vantagens dessa tecnologia é que ela pode ser utilizada em pessoas cujo tipo de câncer não foi identificado — não importa se o câncer é de mama ou pulmão, desde que seja possível identificar suas mutações”, explica Van Morris, médico e professor assistente de oncologia médica gastrointestinal no Centro de Câncer MD Anderson da Universidade do Texas, em Houston, condutor da fase dois de um ensaio clínico que explora o uso de vacinas de RNAm personalizadas para pacientes com câncer colorretal em estágio dois ou três. “Um dos aspectos mais interessantes é a adaptabilidade da tecnologia para um determinado tipo de câncer e sua biologia subjacente.”
Ao longo de 27 semanas, Cassidy recebeu nove doses de uma vacina de RNAm personalizada, junto com infusões intravenosas de um medicamento de imunoterapia chamado Pembrolizumabe. Sua médica, Julie E. Bauman, vice-diretora do Centro de Câncer da Universidade do Arizona, a examinava semanalmente, e depois a cada três semanas; Cassidy também fazia exames de tomografia computadorizada regularmente. Depois de cada injeção, Cassidy sofria um pico de febre e se sentia exausta — com fadiga e dores no corpo — durante 24 horas. “Meu sistema imunológico trabalhava de forma intensa e era justamente o que queríamos que acontecesse, para que ele combatesse o câncer”, ela explica.
Em outubro de 2020, quando o tratamento foi concluído, as tomografias de Cassidy estavam normais: não havia evidências da presença de câncer em seu corpo.
Mensagem dentro de uma agulha
Basicamente, “o que tentamos fazer ao utilizar a vacina de RNAm para o tratamento de câncer é alertar o sistema imunológico sobre o tumor para que ele o ataque — funciona como um software biológico”, explica John Cooke, médico e diretor médico do Centro de Terapias com RNA do Hospital Metodista de Houston. “Estão sendo desenvolvidas vacinas contra tipos de câncer que não possuem boas soluções no momento ou que têm probabilidade de metástase.”
Algumas vacinas de RNAm para tratamento contra o câncer adotam uma abordagem a pronta-entrega: vacinas pré-elaboradas são desenvolvidas para procurar proteínas-alvo localizadas na superfície de certos tumores malignos. No momento, seu funcionamento é tema de especulação, mas alguns especialistas demonstram ressalvas. “A questão é: qual é o alvo? Para que a vacina seja eficaz é necessário saber qual é o alvo correto”, argumenta David Braun, oncologista do Instituto de Câncer Dana-Farber e da Faculdade de Medicina de Harvard e especialista em imunoterapias. Afinal, no caso do câncer, não existe um alvo universal, como ocorre com a proteína de espícula do coronavírus, e as mutações no DNA de células cancerosas variam de um paciente para outro.
É aqui que as vacinas de RNAm personalizadas para o tratamento contra o câncer entram em cena — e podem ser mais promissoras, de acordo com especialistas. Na abordagem personalizada, coleta-se uma amostra do tecido tumoral de um paciente e analisa-se o DNA para identificar mutações que distinguem as células cancerosas das células normais e saudáveis, explica Bauman, que também é chefe do departamento de hematologia/oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Arizona, em Tucson. Computadores comparam as duas amostras de DNA para identificar mutações específicas no tumor e, em seguida, os resultados são utilizados para elaborar uma molécula de RNAm que será inserida na vacina. Normalmente, esse processo dura de quatro a oito semanas — “e requer um grande esforço para ser realizado”, observa Robert A. Seder, chefe da Seção de Imunologia Celular do Centro de Pesquisa de Vacinas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas.
Após a aplicação da vacina de RNAm, as células do paciente recebem a mensagem para produzir proteínas que estão associadas às mutações específicas do seu tumor. Então, os fragmentos de proteína do tumor, criados a partir do RNAm, são reconhecidos pelo sistema imunológico do paciente, explica Morris. Basicamente, as instruções do RNAm treinam os linfócitos T do sistema imunológico — glóbulos brancos que combatem vírus — para reconhecer até 20 mutações nas células cancerosas e atacar somente elas. O sistema imunológico vasculha o corpo inteiro em uma missão de busca e destruição, procurando células cancerosas semelhantes.
“Para que ele não seja detectado, o câncer consegue sinalizar para o sistema imunológico que ele não precisa trabalhar”, explica Anderson. “O objetivo da vacina de RNAm é alertar e preparar o sistema imunológico para que ele procure as características das células tumorais e as ataque.”
“Vacinas personalizadas contra o câncer despertam os linfócitos T citotóxicos especializados, que reconhecem células anormais, e os ativam para exterminar as células cancerosas”, complementa Bauman. “A questão é utilizar nosso próprio sistema imunológico como um exército para eliminar o câncer.”
“Este é o epítome da medicina personalizada”, afirma Morris. “É uma abordagem altamente personalizada e específica, e não um tratamento geral para todos.”
Desafios adiante
Apesar do entusiasmo em relação a esse tipo de tratamento promissor contra o câncer, é importante lembrar: “estamos apenas no início e os resultados serão diferentes do sucesso imediato das vacinas contra a covid-19”, pondera Seder. Antes de mais nada, as vacinas de RNAm contra o câncer não serão disponibilizadas na mesma velocidade extraordinária que as vacinas contra a covid-19, autorizadas para uso emergencial; as vacinas contra o câncer exigirão anos de testes e ensaios clínicos.
Uma das razões para a diferença no tempo de desenvolvimento das vacinas de RNAm contra a covid-19 e para uso no tratamento contra o câncer é o objetivo terapêutico de cada uma. O objetivo das vacinas de RNAm atuais é a prevenção da covid-19: elas são elaboradas para fornecer uma amostra da proteína de espícula característica do coronavírus, de modo que, se as pessoas entrarem em contato com o vírus, o sistema imunológico delas possa combatê-lo. Por outro lado, as vacinas de RNAm contra o câncer são utilizadas como terapias: elas ensinam o sistema imunológico dos pacientes a procurar e destruir células tumorais existentes.
Outro desafio em relação à utilização das vacinas de RNAm é descobrir como construir uma nanopartícula que libere de forma eficaz o RNA mensageiro no local necessário. “Se estiver desprotegido, o RNA mensageiro não entrará nas células e, ao ser introduzido no corpo, será degradado rapidamente”, explica Anderson. “Podemos protegê-lo e inseri-lo nas células, encapsulando-o em uma nanopartícula semelhante a um lipídio.” Dessa forma, as nanopartículas podem burlar os mecanismos de depuração do corpo e entrar nas células corretas. (Atualmente, as nanopartículas à base de lipídios são o sistema de liberação mais comum utilizado em ensaios clínicos de vacinas de RNAm para o tratamento de câncer.)
No entanto mesmo utilizando um sistema de liberação ideal, é improvável que as vacinas de RNAm sejam uma solução definitiva para todos os tipos de câncer. Mas, elas são outra ferramenta promissora para o tratamento de tipos de câncer avançados ou incuráveis. E pesquisadores já analisam a possibilidade de utilizar as vacinas de RNAm em conjunto com outras imunoterapias, como os inibidores de ponto de controle (que liberam um freio natural no sistema imunológico para que os linfócitos T possam reconhecer e atacar os tumores) ou terapia adaptativa com linfócitos T (em que linfócitos T são colhidos do sangue ou tumor de um paciente, estimulados a crescer em laboratório e, em seguida, reinfundidos no paciente para ajudar o corpo a reconhecer e destruir as células tumorais).
Até o momento, há poucos estudos publicados sobre ensaios com vacinas de RNAm utilizadas no tratamento contra o câncer em humanos, mas há sinais de otimismo. Em um ensaio de fase um que analisou a utilização de vacinas de RNAm em conjunto com inibidores de ponto de controle imunológicos no tratamento do câncer de cabeça e pescoço ou colorretal, Bauman e seus colegas encontraram diferenças notáveis: em cinco dos 10 pacientes com câncer de cabeça e pescoço, a terapia combinada reduziu os tumores e dois pacientes não apresentaram sinais de existência de câncer após o fim do tratamento; por outro lado, os 17 pacientes com câncer colorretal não responderam à combinação de tratamentos.
“No caso do câncer colorretal, a atividade do sistema imunológico é baixa — as células cancerosas se escondem melhor”, explica Bauman. “Em alguns casos, mostrar ao sistema imunológico como é a aparência do câncer não é suficiente.” Os linfócitos T precisam chegar até o câncer e eliminá-lo. Isso não aconteceu com os pacientes que tinham câncer colorretal.
Esperança à vista
Enquanto isso, algumas descobertas promissoras estão surgindo a partir de estudos com animais. Em um estudo publicado em uma edição de 2018 da revista científica Molecular Therapy, pesquisadores criaram uma vacina de RNAm para ser utilizada em conjunto com um anticorpo monoclonal (anticorpo sintético feito em laboratório) para aumentar os benefícios antitumorais no tratamento do câncer de mama triplo-negativo, que é notoriamente agressivo, tem alta taxa de metástase e prognóstico ruim. Foi descoberto que camundongos tratados com a terapia combinada apresentaram uma resposta imune antitumoral significativamente melhor em comparação com aqueles que receberam apenas a vacina ou o anticorpo monoclonal. E um estudo publicado em uma edição de 2019 da revista científica ACS Nano constatou que, quando camundongos com linfoma (câncer do sistema linfático) receberam a vacina de RNAm junto com um medicamento inibidor de ponto de controle, houve uma redução significativa no crescimento do tumor, ao passo que 40% apresentaram regressão completa do tumor.
Se a eficácia das vacinas de RNAm for comprovada, a esperança de médicos e pesquisadores é que elas possam ser desenvolvidas para tratar determinados tipos de câncer, prevenir recorrências e, possivelmente, prevenir alguns tipos de câncer em pessoas geneticamente predispostas a eles. “Acho que será mais uma estratégia dos oncologistas para que seus pacientes tenham melhores chances”, indica Cooke. “E se a eficácia das vacinas profiláticas contra o câncer puder ser comprovada, ele pode passar a ser uma doença evitável.”
Enquanto isso, Molly Cassidy já acredita firmemente no poder das vacinas de RNAm para tratar tipos agressivos de câncer. Atualmente, ela se sente muito bem e curte a vida como mãe, em casa com seu filho de 3 anos, seu marido e seus enteados. “Minha médica não diz que estou curada, mas ela está muito feliz com meu estado atual”, conta Cassidy. “Esse tratamento salvou minha vida e sou muito grata aos meus médicos”.
Alguns especialistas afirmam ser possível que, nos próximos cinco anos, uma vacina de RNAm para o tratamento de câncer seja aprovada pela Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês). “Seria uma grande conquista conseguirmos potencializar a capacidade do sistema imunológico de expulsar invasores externos, como o câncer, com precisão”, conclui Bauman.