Ao mesmo tempo em que reinventava a harmonia e a forma de caminhar por ela com suas linhas melódicas, Gil, o novo imortal da Academia Brasileira de Letras, erguia um discurso denso e flexível, regionalista e amplo
Aos que cobram texto dos membros nomeados para a imortalidade pela Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil, o mais novo integrante, tem muitos. Sua posse na ABL será nesta sexta, 8. Analogamente à criação do uso da harmonia que leva a sua assinatura no segundo ou terceiro acorde, ao mesmo tempo em que desenvolvia sua canção menos gilbertiana e mais gonzaguiana do que Caetano Veloso, Gil lidava com a palavra com presença e amplitude, densidade e fruição. Gil é um mestre, basta revisitar qualquer trecho de suas obras:
1. Lamento Sertanejo:
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo
2. Não Tenho Medo da Morte
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?
3. Tempo Rei
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
4. Se Eu Quiser Falar com Deus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
5. Drão
Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar plantar n’algum lugar
Ressuscitar no chão nossa semeadura
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminhadura?
Dura caminhada
Pela estrada escura
Drão, não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminhadura?
Cama de tatame
Pela vida afora
6. Refazenda
Abacateiro, acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos, brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro, teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro, sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo, cedo, antes
Que o janeiro doce manga venha ser também
7. Copo Vazio
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
É sempre bom lembrar
Guardar de cor que o ar vazio
De um rosto sombrio está cheio de dor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Por Julio Maria