Fico nervoso com a ideia de um leão caçando sonegadores. Quantas correções terei que enviar?
Quando certa manhã acordei de sonhos intranquilos, encontrei-me em minha cama metamorfoseado em alguém que precisava fazer o próprio Imposto de Renda.
Arrastei-me até o banheiro, olhei-me no espelho e encontrei a cara de um contribuinte brasileiro prestes a baixar o programa da Receita para preenchimento e declaração de impostos.
No chuveiro, fechei os olhos e pensei em todos os comprovantes. Será que tenho tudo o que preciso?
O café desceu mais amargo do que o habitual. Me senti mareado, enjoado, zonzo mesmo. Gastos com saúde e educação ainda são dedutíveis?
E se eu deixar para amanhã? Ou melhor, para o finalzinho do prazo? Deus ajuda os bêbados e os atrasados.
Mas eis me aqui, maltrapilho cidadão, olheiras de ressaca, na frente do PC, cumprindo o ritual anual de declarar o meu imposto e torcer por uma restituição generosa.
Quantos erros vou cometer desta vez? Quantas correções terei de enviar?
Por mais simplificada que seja a minha declaração, fico nervoso com a ideia de um leão caçador de sonegadores. Quem inventou a expressão “o leão do Imposto de Renda”? Por que tanta agressividade?
Fecho os olhos e imagino um leão bíblico me devorando porque esqueci de declarar a rebimboca da parafuseta que eu adquiri em setembro. E sinto o Leão me devorando como se eu fosse um suculento empresário sonegador.
Agora que eu estou com o programa aberto, vou parar de reclamar. Tão inevitável quanto a morte é a declaração de bens. Sossega, leão. Não apresse o meu coração de contribuinte. Eu só queria tempo para colocar minha leitura em dia. Tenho tanto livro parado:
(…)
Muitos anos depois, diante do programa da Receita, recordei aquela tarde remota em que meu pai me explicou como fazer o Imposto de Renda.
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Todas as declarações de Imposto de Renda enviadas com sucesso se parecem, mas cada declaração que cai na malha fina é infeliz à sua maneira.
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Hoje foi o último dia para declarar o Imposto de Renda. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama da Receita: sua declaração caiu na malha fina. Enterro amanhã.
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É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de declarar seu Imposto de Renda.
(…)
No dia seguinte ninguém declarou o Imposto de Renda.
*Gilberto Amendola é repórter do Estadão e observador da vida urbana
Por Gilberto Amendola