Em meio a uma crise de saúde mental, companhia disputam um lugar em nossos momentos sem telas
Normalmente, “tecnologia para saúde mental” significa um aplicativo com alguns recursos na tela, como mensagens, jogos ou escrever um diário. Agora, uma série de produtos foca em algo diferente: seu corpo.
Como a Orb (US$ 229), por exemplo, uma bola um pouco menor que um melão, fabricada pela startup israelense Reflect Innovation, que, ao ser repousada em suas mãos, mede a frequência cardíaca e o suor nos dedos enquanto você tenta relaxar. Ou o Zen (US$ 79), da empresa francesa Morphée, que se parece exatamente com uma pedra, mas na verdade é um dispositivo de áudio que reproduz o conteúdo de meditação da empresa. Ou ainda como a empresa holandesa Alphabeats, que desenvolveu um aplicativo de redução de estresse (com anuidade de US$ 28,99) que combina música e “biofeedback”, técnica em que você pratica o controle das funções do seu corpo, como respiração ou frequência cardíaca.
Armadas com produtos caros e bonitos, que talvez sejam mais terapia caça-níquel do que tratamento de saúde mental, as empresas de tecnologia estão se acotovelando para conseguir espaço e oferecer momentos de paz e silêncio que podem ser terapêuticos mesmo sem um dispositivo brilhante ou barulhento. Diversos estudos científicos mostram que a meditação e o biofeedback são tratamentos eficazes para a ansiedade – o que poderia beneficiar a muitos de nós em meio a algo que está se transformando em uma epidemia de estresse. Mas as empresas de tecnologia têm pouco interesse em provar que seus produtos funcionam para tratar o estresse e a ansiedade, alertam os especialistas.
“Não é nada científico ou baseado em significância estatística ou qualquer coisa, mas o feedback mais forte que recebo é quando alguém escuta falar deste produto e diz: ‘Oh, eu preciso de um’”, disse Shiri Perciger, diretora de marketing da Reflect, que fabrica a Orb.
É fácil ver o apelo das terapias corporais para pessoas estressadas. Embora existam poucas evidências relacionando o estresse ao uso de telas, temos certa desconfiança em relação aos nossos celulares, os dados que eles coletam e o estresse que despejam em nosso colo a qualquer momento. Um estudo muito conhecido e publicado em 1992 no American Journal of Psychiatry constatou que a meditação tem efeitos positivos duradouros para pessoas com ansiedade e síndrome do pânico. E uma pesquisa de 2017 descobriu que a técnica conhecida como biofeedback, com a qual se treina o controle da frequência cardíaca, levou a quedas significativas na autoavaliação de ansiedade.
Também há benefícios para as empresas. Meditação e biofeedback não carregam os fantasmas dos escândalos que cercam outros tipos de tecnologia para saúde mental, como aplicativos de terapia por mensagens de texto. (O aplicativo de terapia mais popular, o Talkspace, deu celulares pré-pagos aos funcionários para que eles escrevessem boas avaliações e, assim, fizessem as ruins desaparecerem, de acordo com reportagem do New York Times. Já o BetterHelp foi criticado pelo serviço instável e respostas automatizadas aos pacientes.)
Tecnologia e terapias corporais combinadas
Em seu livro, O corpo guarda as marcas, o médico e pesquisador Bessel van der Kolk criticou os profissionais de saúde mental por deixarem de lado os tratamentos corporais, e citou a meditação e o biofeedback como terapias com potencial para fazer uma releitura da área. Atualmente, as empresas de tecnologia estão reformulando esses métodos e transformando-os em produtos fáceis de usar.
Tanto a meditação como o biofeedback envolvem prestar atenção ao corpo: aqueles que meditam costumam se concentrar na respiração ou em outra sensação física, já o biofeedback mede sua respiração, frequência cardíaca ou ondas cerebrais e lhe entrega uma avaliação com base nesses dados. Por exemplo, a Orb da Reflect mede dois indicadores fisiológicos de estresse – variabilidade da frequência cardíaca, que é a duração das pausas entre diferentes batimentos cardíacos, e atividade eletrodérmica das glândulas sudoríparas nos dedos. Ao mesmo tempo em que a avaliação acontece, uma luz suave no topo da Orb vai do roxo para o azul, até se tornar branca, enquanto seu corpo se acalma.
Só de prestar atenção a essas funções corporais, as pessoas começam a tentar mudá-las, disse Perciger, da Reflect. Algumas começam a respirar mais profundamente. Outras tentam encontrar – mesmo que nem sempre conscientemente – maneiras diferentes de mudar a avaliação da Orb.
A Alphabeats baseia-se em ideias semelhantes. Depois de emparelhar o aplicativo com sua conta no Spotify, você se deita, coloca o telefone na barriga e começa a ouvir música. Em um dos exercícios oferecidos, um zumbido sutil pode ser ouvido enquanto você escuta suas músicas até que sua respiração e frequência cardíaca fiquem mais calmas, então ele desaparece. Já em outro, o aplicativo ajusta sutilmente a qualidade do áudio em resposta ao seu corpo.
E também há o Zen, da Morphée, que à primeira vista parece uma pedra e, olhando de perto, é um reprodutor de arquivos de áudio que não tem quem diga não ser uma pedra.
Conecte um par de fones de ouvido ao Zen e você poderá escutar meditações, exercícios de visualização, avaliações corporais e música. Como não há aplicativo e nem mesmo uma tela, não há risco de você ser interrompido por uma notificação de e-mail, por exemplo, disse o cofundador da Morphée, Charlie Rousset
É possível aproveitar todos os benefícios das meditações com o mínimo de interferência tecnológica – com exceção dos fones de ouvido conectados à sua “pedra”, é claro.
Solução
A ‘tecnologia para ansiedade’ é uma solução rápida para um problema sério.
Mas essa é nossa melhor opção? É fácil zombar da estranha Orb ou da pedra tecnológica. Mas quando ridicularizamos esses produtos, nos tornamos muito diferentes daqueles que insistem em dizer que as pessoas ansiosas devem apenas parar de frescura e “mimimi”?
Os cuidados com a saúde mental estão cobertos de estigma e é difícil saber o que é confiável. Mesmo antes da pandemia de covid-19, 18% dos americanos sofriam de ansiedade clínica, de acordo com a Associação de Ansiedade e Depressão dos Estados Unidos (ADAA, na sigla em inglês). Agora, a pandemia foi apelidada (não oficialmente) de crise de saúde mental devido ao seu papel na intensificação da ansiedade.
Apesar da crescente demanda por tecnologia para saúde mental, ainda há pouca supervisão sobre a eficácia dos produtos, diz Stephen Schueller, professor de psicologia da Universidade da Califórnia, em Irvine, e diretor-executivo do site One Mind PsyberGuide, que avalia aplicativos para saúde mental e outros recursos digitais para saúde.
Um estudo com 52 aplicativos para ansiedade de 2017 apontou que dois terços deles não contavam com profissionais de saúde em suas equipes de desenvolvimento e menos de 4% foram cuidadosamente testados. Contanto que as pessoas comprem, as empresas pouco ligam para comprovar o que alegam oferecer, disse Schueller, e os produtos de meditação e biofeedback não são exceção.
Quando as empresas apresentam fatos e números, observou Schuller, eles podem ser retirados de estudos com participantes que não sofrem de ansiedade crônica. Foi o que aconteceu com a Reflect, que ainda não estudou o efeito da Orb em pessoas com diagnóstico de ansiedade. Rousset, da Morphée, disse que ainda era muito cedo para compartilhar dados a respeito da eficácia do Zen, apesar de o produto já estar disponível no mercado europeu.
Mesmo assim, executivos da empresa dizem que tomaram algumas medidas para validar seus produtos. A Morphée diz que tem parcerias com vários hospitais e profissionais que recomendam seus outros produtos para insônia.
A Alphabeats diz que viu resultados promissores em um estudo recente com profissionais de saúde da Universidade de Ciências Aplicadas Fontys, em Eindhoven, na Holanda. Depois de usar o biofeedback musical regularmente durante quatro semanas, os trabalhadores relataram níveis mais baixos consideráveis de estresse, segundo a empresa.
A tecnologia para saúde mental também pode desempenhar um papel importante para pessoas ocupadas demais ou sem acesso a outros tipos de cuidados, disse Schuller. De fato, um em cada três condados dos EUA não conta com um único psicólogo, de acordo com a Associação Americana de Psicologia.
Heather Shoren Iarusso, professora de meditação que conduz práticas no San Francisco Zen Center, disse que as empresas de tecnologia não se interessam de verdade em acabar com nosso estresse – elas apenas nos incentivam a fazer breves pausas.
Qualquer produto que seja responsável por um resultado positivo para a saúde mental das pessoas vale a pena, mas as empresas que comercializam produtos para meditação devem tomar cuidado: antes de “Zen” se referir a uma pedra que custa US$ 79, essa era uma palavra que remetia a uma tradição espiritual. E essa tradição ensina ideias – como autocompaixão e desapego de objetos terrenos – que talvez sejam ruins para os negócios, disse ela. / TRADUÇÃO POR ROMINA CÁCIA
Por Tantum Hunter