Foco total na categoria está na aerodinâmica, mas sem descuidar da aparência; ideia é melhorar o espetáculo nas pistas
A Fórmula 1 voltou ao passado para buscar seus carros do futuro. A temporada 2022 vai resgatar ideias e conceitos que fizeram sucesso há 40 anos para melhorar o rendimento dos pilotos nas pistas sem causar a temida turbulência, que atrapalha as ultrapassagens. Pela primeira vez em sua história, a categoria promove mudanças bruscas em seus carros visando o espetáculo. Se tudo sair como a F-1 planeja, o campeonato deste ano será mais equilibrado e agradável de assistir do que os anteriores.
As novidades alteram toda a estrutura dos monopostos, com foco total na aerodinâmica, mas sem descuidar da aparência. Os modelos deste ano são mais bonitos, de traços mais arredondados e suaves. O visual, portanto, será “limpo”, com menos penduricalhos e mais elegância.
“Havia uma suspeita de longa data de que os carros não eram muito ‘amigáveis’ quando estavam correndo um contra o outro. A performance do carro que vem atrás era afetada pelo da frente. Ele começava a perder rendimento quanto mais se aproximava do adversário. E isso não ajuda a fazer uma boa corrida”, explicou Ross Brawn, diretor técnico da F-1 ao jornal The New York Times.
A promessa da cúpula do campeonato é fazer “corridas menos previsíveis e mais espetaculares”. De quebra, as novidades têm potencial para acabar com a hegemonia da Mercedes, que domina a categoria desde 2014, quando foram introduzidos os motores híbridos. A equipe venceu os oito Mundiais de Construtores disputados até então e sete Mundiais de Piloto. O primeiro revés aconteceu no ano passado, com a derrota de Lewis Hamilton diante de Max Verstappen, da Red Bull.
As novidades começaram a ser estudadas em 2017, assim que Ross Brawn se tornou diretor. Foram elaboradas 21 versões do novo modelo com base em 7.500 simulações, dentro e fora do túnel de vento, para chegar ao resultado final. O grande objetivo? Manter ou até mesmo elevar a velocidade atual dos carros sem gerar tanta turbulência, o chamado “ar sujo”, que é gerado por um competidor e é arremessado diretamente contra o carro que vem logo atrás. O ar turbulento diminui a velocidade do piloto de trás, causa instabilidade e impede aquelas disputas mais acirradas que tanto encantam os fãs de automobilismo.
A solução para resolver este problema foi encontrada no passado. Ironicamente, a F-1 está resgatando uma ideia que foi proibida em 1983 pela falta de segurança. Hoje, com mais sistemas de proteção e estabilidade, o conceito de “carros-asa” e “efeito solo” podem ser recuperados sem gerar maiores preocupações.
O RETORNO DOS CARROS-ASA
Não é de hoje que os monopostos de Fórmula 1 são chamados de “aviões sem asa”. O conceito que está sendo resgatado reforça essa ideia. O novo modelo tornou o assoalho do veículo o grande protagonista na busca por maior pressão aerodinâmica, que é o que mantém o carro colado no chão, capaz de gerar maior velocidade. Antes, esse papel cabia aos aerofólios dianteiro e traseiro. O “novo” sistema foi concebido por Colin Chapman no consagrado Lotus-Ford 79. Não por acaso ele era engenheiro aeronáutico.
Recuperando as ideias de Chapman, o assoalho, antes plano, ganhou um novo desenho, com o chamado perfil de asa invertida. Este formato, mais visível nas laterais do carro, usa o mesmo princípio dos aviões. Nas aeronaves, a asa é instalada de forma a criar maior pressão embaixo, permitindo o voo. Nos carros de F-1, acontece exatamente o oposto. A asa é invertida para forçar a pressão de cima para baixo, o famoso “downforce”, que empurra o carro para o chão.
Não será a única mudança no assoalho, que passa a ter buracos formando canais do início ao fim do carro. Eles vãos reduzir a pressão e aumentar a velocidade do ar, naquilo que é conhecido na física como Efeito Venturi. Na prática, esse movimento do ar sob o carro o deixa mais rápido e estável nas curvas, quando geralmente os veículos se distanciam mais um do outro. Agora poderão ficar mais próximos, aumentando as disputas nas pistas.
As novas regras da F-1 também preveem o fim dos vórtices, responsáveis por causar a turbulência. Eles são uma espécie de redemoinho no ar, rodando em alta velocidade. Até o ano passado, os monopostos contavam com várias peças e aletas que causavam este distúrbio nos adversários que vinham logo atrás.
Foram eliminadas peças que causavam vórtices desde o aerofólio dianteiro, passando pelos pneus, aerofólios traseiros e “bargeboards”, peças instaladas nas laterais para desviar o ar para trás. Com as alterações no assoalho e nos demais componentes, o ar agora fará um novo caminho quando o carro estiver em velocidade no asfalto. Ele será direcionado para cima, bem mais alto do que antes, reduzindo o “ar sujo” que atrapalharia os carros seguintes.
De acordo com a F-1, os modelos antigos causavam uma perda de pressão aerodinâmica de 35% para o carro que vinha atrás numa distância de 20 metros. Quando a diferença era de 10 metros, o monoposto de trás perdia 46% do seu rendimento. Com as novidades, estas perdas caem para 4% (20m) e 18% (10m). Assim, o segundo colocado poderá ficar mais perto do primeiro por mais tempo, impondo mais pressão e esquentando a briga.
DÚVIDAS
As novidades trouxeram consequências inesperadas para pilotos e equipes. A maior delas, causada pelas alterações no chassi, foi o aumento do peso dos carros em 5%. Os veículos terão 38 kg a mais, passando de 752 kg para 790 kg.
A dúvida, portanto, é se os carros ficarão mais lentos neste ano ou se o maior peso será compensado pelo ganho de velocidade com o efeito solo. Na prática, é possível que os carros sejam mais velozes em circuitos com mais curvas de alta velocidade, onde o conceito de “carros-asa” faria maior diferença. No caso do Autódromo de Interlagos, em São Paulo, os monopostos devem fazer voltas mais lentas em comparação a 2021 por não contar com curvas mais velozes.
Há expectativa também sobre como os carros vão se comportar na chuva. Uma pista encharcada poderia amenizar o efeito solo. Eventuais detritos no asfalto também têm potencial para neutralizar a novidade.
A F-1 promete encurtar a distância entre os primeiros e os últimos colocados nas provas. Se em 2021 a diferença entre a Mercedes, vencedora do Mundial de Construtores, e a lanterna Haas era de três segundos em média, neste ano esse número deve cair pela metade. “Esperamos que até o fim de 2022 a diferença caia para um segundo e meio”, confia Nicholas Tombazis, um dos principais diretores da área técnica da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), que trabalhou com a F-1 na elaboração do novo carro.
O sonhado equilíbrio, se confirmado, será também consequência do teto de gastos imposto às equipes. São US$ 142 milhões (cerca de R$ 756 milhões) para desenvolver o carro e pagar quase todas as contas dos times. O limite já deve trazer consequências porque as mudanças deste ano eram previstas para 2021, quando o teto era maior. As novidades foram adiadas para este ano devido à pandemia de covid-19.
Quanto à performance geral dos monopostos, a expectativa é menos otimista. Especialistas, como o diretor técnico da Mercedes, Mike Elliot, acreditam que o desempenho não será muito distinto neste ano. “A performance geral dos carros novos provavelmente não será muito diferente dos modelos antigos. Claro que a intenção deste novo regulamento é favorecer as ultrapassagens, mas levará um tempo até que possamos ver se isso realmente acontecer nas pistas.”
BRECHAS
Os novos monopostos vão para a pista pela primeira vez nos dias 23, 24 e 25 deste mês, no Circuito da Catalunha, na Espanha. A segunda bateria de testes da pré-temporada está marcada para 10 a 12 de março, no Circuito de Sakhir, no Bahrein, que vai sediar a primeira prova do ano, no dia 20 do mesmo mês.
Somente aí os fãs de automobilismo vão descobrir se a Mercedes seguirá dominante ou se alguma equipe apresentará ideia surpreendente para sair na frente das demais. Historicamente, sempre houve times que souberam interpretar melhor os regulamentos técnicos. A “brecha” famosa mais recente foi obtida pelo próprio Ross Brawn, em 2009. Na época, ele dirigia sua equipe, a Brawn GP, que tinha Rubens Barrichello como um dos pilotos.
Com longo e vitorioso histórico na Ferrari, Brawn criou o “difusor duplo”, solução aerodinâmica na parte traseira do carro que fez a equipe não apenas sair em vantagem como vencer os dois Mundiais da F-1, o de Construtores e o de Pilotos, com o inglês Jenson Button. A novidade foi copiada por todos os times ao longo da temporada e depois acabou sendo banida.
Especialistas acreditam que algo parecido pode acontecer neste ano. “É muito possível que equipes que não estavam na briga pelo título (de 2021), como Ferrari, McLaren e Aston Martin, possam aparecer com conceitos inteligentes baseados em maior tempo de testes e trabalho”, diz Toto Wolff, chefão da Mercedes. A preocupação é compartilhada pela Red Bull porque os dois times priorizaram a conquista do título em detrimento do desenvolvimento do novo carro. “Vamos ver quem entendeu bem e quem entendeu mal (o regulamento)”, afirma Christian Horner, líder da Red Bull.
“Toda vez que o regulamento muda muito, pode surgir uma equipe que encontra um pulo do gato”, afirmou ao Estadão Felipe Giaffone, ex-piloto e comentarista da Band. Ele argumenta que a “disputa” entre F-1 e equipes é injusta na busca por brechas. “A direção F-1 deve ter no máximo uns seis engenheiros. E as equipes, somadas, devem ter quase 1.000 pensando em como encontrar brechas. E isso é normal no automobilismo, acontece desde o kart. Geralmente são poucas as pessoas que escrevem os regulamentos e estão sempre correndo atrás do próprio rabo nestas situações.”
“AMERICANIZAÇÃO”
Giaffone acredita que o esperado equilíbrio entre as equipes se concretiza de fato a partir de 2023, quando as regras e possíveis brechas estejam todas consolidadas. A meta, na sua opinião, é emular as disputas mais parelhas da Nascar e Fórmula Indy – os donos da F-1, o grupo Liberty Media, são americanos e especialistas na área de mídia.
Os campeonatos serão mais decididos pela habilidade dos pilotos do que pelos cálculos dos engenheiros. “A F-1 sempre teve como ‘regra interna’ fazer uma corrida de engenheiro, e não de piloto. Vence quem tem o melhor carro. Via de regra, quem guia os melhores carros são os melhores pilotos. É uma corrida de carro, na visão deles, por ser engenharia pura. E agora eles vêm para mudar essa ideia: o talento dos pilotos vai começar a se sobrepor à máquina. Mas é claro que a F-1 jamais será uma Indy, com tudo igualzinho.”
Felipe Felipe Rosa Mendes