“Um homem mau maltratava o seu velho pai, obrigando-o a morar em uma cabana miserável, longe da casa, vestindo-o com farrapos e dando-lhe sobras para comer. Um dia viu que seu filho estava colocando trapos sujos, que tinha tirado da lixeira, no lugar onde se guardava a roupa fina da casa e se enfureceu com ele. O seu filho respondeu assim: Papai, não brigue comigo. É para você que estou guardando estes trapos, para que você possa vestir quando for velho como o vovô”. (Literatura oral iemenita)
O crédito consignado é modalidade de contratação com pagamento indireto, cujas parcelas são deduzidas diretamente da folha de pagamento ou benefício da pessoa física. Atualmente, essa espécie de contrato pode comprometer até 40% da renda mensal do usuário, sendo 35% em forma de empréstimo consignado e 5% destinada ao cartão de crédito consignado.
Essa espécie de crédito pode ser obtida em instituições financeiras, cuja duração não deve ser superior a 84 meses para aposentados e pensionistas do INSS. Nesse tipo de contratação, a taxa de juros é bem menor do que as oferecidas em outras modalidades. Essa possibilidade mais descomplicada tem uma razão muito simples de ser: o fornecedor do crédito consignado tem garantia do adimplemento da dívida, uma vez que os valores das parcelas são descontados diretamente da folha de pagamento ou do benefício do cidadão.
A concessão de empréstimos consignados foi introduzida formalmente no Brasil, por meio da MP nº 130/2003, convertida na Lei n° 10.820/2003. Logo nos seus primeiros anos de implementação, essa modalidade de contratação apresentou crescimento exponencial. De acordo com o Bacen, em maio de 2005, as operações de crédito com recursos livres para pessoas físicas cresceram 36,8% em 12 meses, enquanto o total do crédito ofertado por consignação em folha cresceu 120,01% neste período[1]. Em janeiro deste ano (2021), o volume do crédito consignado bateu recorde, alcançando o montante de R$ 442,8 bilhões contratados. De acordo com dados do Banco Central, é o maior valor já registrado nesta modalidade de empréstimo.
Porém, é preciso analisar o produto sob a perspectiva do consumidor idoso hipervulnerável, observando-se que o crédito consignado tem sido objeto de reclamações constantes, fraudes, abusos e ilicitudes desde a sua implementação, em 2003. E é o maior causador do superendividamento do idoso, haja vista sua concessão irresponsável!
Ao longo desses 18 anos, houve milhares de reclamações registradas por consumidores idosos nas plataformas de defesa do consumidor. Diante desse cenário de ilicitudes implementadas pelas instituições financeiras na comercialização do crédito consignado, vários foram os atos normativos expedidos pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo, a fim de frear os abusos dos Bancos. Destaca-se a edição da IN nº 28/2008 do INSS, alterada pela IN nº 39/2009 da referida autarquia federal, que trouxe a possibilidade de aplicação de penalidades às Instituições Financeiras infratoras.
Nos 13 anos de vigência do referido ato normativo, mesmo diante do elevado número de reclamações dos consumidores e das constantes notificações dos órgãos componentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a sanção de suspensão de novas operações de crédito consignado foi empregada apenas única vez: em 2020, como medida cautelar aplicada pela Secretaria Nacional do Consumidor[2].
Para agravar o cenário caótico do crédito consignado, verifica-se que as ilicitudes e contratações fraudulentas se intensificaram no último ano em razão da pandemia de COVID-19. Nesse contexto, a gravidade da violação de direitos sofrida pela população idosa ao longo dos 18 anos de vigência do crédito consignado no país, faz-se imprescindível a atuação do Poder Judiciário, a fim de assegurar o cumprimento integral do princípio da legalidade e a aplicação imediata da estrutura normativa vigente, com a execução das penalidades às instituições financeiras infratoras.
Do início de 2016 até junho de 2018, a ouvidoria do INSS recebeu mais de 97 mil reclamações relativas a empréstimos consignados não autorizados pelos clientes[3]. As queixas cresceram ainda mais durante a pandemia, após o acréscimo de 5% ao percentual máximo para a contratação de operações de crédito com desconto automático em folha de pagamento, promovido pela Lei nº 14.131/2021. As ocorrências envolvendo o crédito consignado registraram uma alta de 126%, em um ano, na plataforma consumidor.gov.br.
Uma das práticas abusivas tem sido denominada como “telessaque” e consiste na realização de depósito pecuniário na conta de consumidores, sem a anuência ou ciência destes, impelindo-os à realização de um empréstimo consignado ou saque atrelado ao limite do cartão de crédito consignado, muitas vezes, sem qualquer contato prévio com o consumidor. A ilicitude da referida operação está sendo discutida em diversas ações coletivas[4], com a incidência de decisões liminares para obstar a prática abusiva.
Para regulamentar o artigo 6º da Lei 10.820/2003, o INSS expediu a IN nº 121/2005 que regula a realização de empréstimos consignados, em consonância com o Código de Defesa do Consumidor, prevendo uma série de requisitos a serem observados pelas instituições financeiras, dentre os quais se encontra o pleno e total esclarecimento ao cliente sobre o valor do empréstimo contraído, a quantidade de parcelas, o valor de cada parcela, o valor dos juros cobrados, etc. (INSS, 2005).
Nesse sentido, a IN INSS nº 39/2009, que acrescentou o artigo 3º, inciso III, na IN nº 28 a invalidade da autorização dada pelo beneficiário por meio de ligação telefônica, garantido que o contrato de empréstimo consignado apenas tenha validade jurídica desde que a autorização seja dada de forma expressa, por escrito ou por meio eletrônico também não vem sendo cumprido, já que atualmente as instituições financeiras vem adotado a “selfie” como modalidade de assinatura. Ocorre que tal “modalidade” de assinatura não possui o condão de confiabilidade de que o consumidor teve pleno acesso aos termos do contrato, tampouco se de fato houve expressa aquiescência do segurado.
O número de ações judiciais coletivas e individuais envolvendo a prática do “telessaque” é tão expressivo que o TJMG instaurou o IRDR nº 1.0000.20.602263-4/001, para tratar da invalidade e ilicitude da referida prática realizada pelas instituições financeiras.
Diante da explosão de dados vazados, com ligações de terceiros, antes mesmo de o segurado ser informado que teve seu benefício concedido, no final de 2018, o INSS editou a IN nº 100, que determina que os bancos só poderão procurar os segurados para oferecer crédito consignado depois de 180 dias da concessão do benefício. Ressalta-se que o referido ato normativo somente foi editado em razão do acordo firmado na Ação Civil Pública nº 0106890-28.2015.4.01.3700, proposta pela Defensoria Pública do Maranhão, perante a 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do estado.
Após a análise do retrospecto do vazamento de dados dos beneficiários do INSS é possível delimitar os papéis do INSS e da Dataprev na concessão do benefício. A autarquia tem o papel de estabelecer os convênios com as instituições financeiras, estabelecer as normas e diretrizes para os entes conveniados, bem como fiscalizar, penalizar e desconveniar aqueles agentes financeiros que não estiverem de acordo com as diretrizes impostas por ela. A Dataprev é a detentora dos dados dos segurados, sendo ela que fornece os dados sensíveis (nome, cpf, ci, data de nascimento) dos consumidores para as instituições financeiras conveniadas. Todavia, INSS e Dataprev não realizam qualquer tipo de fiscalização e, por consequência, o sistema de concessão de benefícios acaba se tornando muito frágil.
Pelo exposto neste artigo, é possível concluir que há inegável inércia dos órgãos (INSS e Dataprev), a qual gerou um enorme prejuízo a coletividade, o que vem, inclusive, ocasionando, o superendividamento dos idosos que não possuem qualquer estruturação para terem valores consignados em seus benefícios, mas, ainda assim, são impingidos a contratos não desejados.
Em que pese as denúncias reiteradas de todo o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor nestes 18 anos, a respeito da comercialização irresponsável do crédito consignado, não se tem notícia que a autarquia tenha suspendido ou cancelado o convênio com qualquer instituição financeira, nos termos do artigo 52, da instrução normativa 28/2008, do próprio INSS.
Por essa razão, o Instituto Defesa Coletiva[5], entidade civil, que atua pela defesa do consumidor hipervulnerável ajuizou Ação Civil Pública[6], visando a alteração do modus operandi na concessão do crédito consignado. Espera-se a sensibilidade do Poder Judiciário para aplicar as medidas preventivas e inibitórias[7] contidas na tutela de urgência, em total consonância com o princípio da máxima efetividade da tutela coletiva, a fim de evitar ainda mais danos irreparáveis à coletividade.
*Lillian Salgado é advogada e sócia-fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados. Presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG, diretora de Proteção de Dados do INSS do IEPREV, conselheira do Fundo Municipal de Defesa do Consumidor e do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais
*Elen Prates de Souza é advogada e diretora executiva do Instituto Defesa Coletiva e Integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG
[1] PULCINE, Paola Ronconi; SANTOS, Vilma da Silva; OLIVEIRA, Edson Aparecida de Araújo Querido Oliveira. O papel do crédito consignado brasileiro para aposentados e pensionistas. Disponível em: Acesso em 27/05/2021.
[2] Na data de 29/12/2020, a Secretaria Nacional do Consumidor por meio do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor adotou medida cautelar de suspendendo das operações de créditos consignados do C6 Bank (C6Consig), tanto em transações realizadas por meio eletrônico como naquelas efetivadas por meio de correspondentes bancários, conforme publicação do Diário Oficial da União (14410541).
[3] Aposentados e pensionistas recebem empréstimos sem pedir. [3] Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/10/02/aposentados-e-pensionistas-recebem-emprestimos-sem-pedir.ghtml Acesso em 29/05/2021.
[4] https://defesacoletiva.org.br/site/wp-content/uploads/2021/11/ACPS-abusos-do-cr%C3%A9dito-consignado.pdf
[5] Ação Civil Pública – nº 1041189-84.2021.4.01.3800 – na 17ª Vara da Justiça Federal de Minas Gerais
[6] https://defesacoletiva.org.br/site/wp-content/uploads/2021/08/acp-inss.pdf
[7] “Gregório Assagra ensina que o processo coletivo deve ser guiado pelo princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva comum, admitindo-se, portanto, todos os tipos de ações, procedimentos, medidas e provimento, desde que adequados a propiciar a correta e efetiva tutela do direito coletivo” – ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 578.
Por Lillian Salgado e Elen Prates de Souza