As patas da onça-pintada estavam em carne viva quando foi encontrada por voluntários na beira do rio, seu destino final em uma busca desesperada por água.
Desde janeiro, incêndios florestais avassaladores — provavelmente provocados por produtores rurais para limpeza e preparação de suas terras — queimaram quase 20% do habitat desse jovem macho no Pantanal brasileiro, parte do maior pantanal tropical do mundo. Estendendo-se pelo Brasil, Bolívia e Paraguai, o Pantanal, com mais de 180 mil quilômetros quadrados, possui a maior densidade de espécies de mamíferos na Terra. Embora a Floresta Amazônica, 30 vezes maior do que o Pantanal, geralmente domine as manchetes devido aos incêndios frequentes, tais incêndios não são tão comuns no Pantanal. Neste ano, os maiores incêndios no Pantanal são quatro vezes superiores aos maiores incêndios da Amazônia, de acordo com os satélites da Nasa.
Para salvar sua biodiversidade única, equipes de voluntários se espalharam por toda a região, resgatando centenas de animais e deixando alimento e água a muitos outros.
Em setembro, voluntários em um barco avistaram a onça-pintada ferida deitada de lado na margem de um rio no Parque Estadual Encontro das Águas, lar de uma das maiores populações da espécie.
A equipe sedou o animal e o levou a Porto Jofre, um centro para muitas organizações sem fins lucrativos, bombeiros voluntários e organizações governamentais que combatem os incêndios e socorrem animais silvestres. A onça-pintada foi levada por transporte aéreo a um hospital de emergência e, embora esteja se recuperando bem em um centro de reabilitação, ainda é cedo demais para saber se poderá ser devolvida à natureza.
“Se a onça-pintada — um animal no topo da cadeia alimentar que é capaz de nadar, subir em árvores e correr — está sofrendo assim, imagine como é para animais mais indefesos”, afirma Carla Sássi, veterinária, bombeira e coordenadora do Grupo de Resgate de Animais em Desastres, uma das organizações sem fins lucrativos locais que resgatou o felino.
Sássi e seus colegas montaram 72 pontos de alimentação e hidratação ao longo de quase 150 quilômetros da rodovia Transpantaneira, uma das principais estradas do Pantanal. A situação ficou tão terrível que alguns animais, como macacos e antas, esperam todos os dias o retorno dos socorristas para repor as provisões.
Muitos dos animais, como o quati — um parente do guaxinim — são encontrados vagando pela estrada, desidratados e exaustos. Animais com elevada dependência hídrica, como o jacaré, um réptil primo dos crocodilos, sofrem mais com a queima de seu habitat.
Segundo Sássi, as espécies que já estavam em declínio antes dos incêndios merecem atenção especial. A União Internacional para a Conservação da Natureza classifica a onça-pintada como quase ameaçada de extinção; existem entre quatro mil e sete mil onças-pintadas no Pantanal, dentre um total de cerca de 170 mil animais em toda a América Central e do Sul. A anta e o tamanduá-bandeira são considerados vulneráveis.
Os especialistas afirmam que, além das vidas perdidas, os incêndios produzirão um impacto ecológico em longo prazo. Os habitats de muitas espécies de animais silvestres serão destruídos, o que provavelmente acirrará a competição entre os animais pelas fontes de água remanescentes. O Pantanal também fornece alimentos e água, além de proteção contra enchentes, tanto para a fauna quanto para comunidades humanas, e esses serviços podem ficar afetados por décadas.
Água vital a pessoas e animais
Antes dos incêndios, o Pantanal, localizado principalmente nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Centro-Oeste brasileiro, estava bem preservado, com 83% de sua cobertura vegetal nativa intacta.
Suas zonas úmidas atuam como uma grande esponja que retém águas alagadas em sua bacia superior entre outubro e março, criando uma proteção natural contra enchentes às pessoas e animais que vivem rio abaixo, antes de secar lentamente entre abril e setembro. Esse acúmulo de água no outono e inverno hidrata a região por muito tempo após as chuvas de verão, mantendo vivas suas mais de 4,7 mil espécies da flora e da fauna — como anacondas, tucanos, tamanduás, araras e capivaras.
Como parte de seu ciclo hidrológico, os níveis de água no Pantanal se alternam entre inundações maiores e menores a cada período de sete a dez anos. O ciclo agora está em uma época de declínio natural que provavelmente durará mais quatro a seis anos. Contudo, nos últimos dois anos, esse bioma — ou grande ecossistema — recebeu ainda menos chuvas do que o esperado.
Parte do problema está relacionado ao que está ocorrendo nos biomas vizinhos. Muitos dos 1,2 mil rios e córregos que formam o Pantanal se originam no Cerrado, uma savana tropical ao leste e ao sul também devastada pelo fogo. Ao norte, a Amazônia continua a encolher devido ao desmatamento. A flora da floresta equatorial aumenta a umidade do ar por evaporação, responsável por parte das chuvas do Pantanal. Quando as árvores desaparecem, essa fonte de água também desaparece.
A conjunção desses fatores produziu a maior seca do bioma em cinco décadas: o volume de precipitação entre outubro de 2019 e março de 2020 foi 40% menor do que a média para o semestre.
Se o padrão de incêndios florestais e estiagem persistir, o Pantanal poderá perder seu padrão anual de inundações e, com o decorrer do tempo, se transformar em outra Caatinga, bioma localizado no nordeste do Brasil, onde as espécies se adaptaram à escassez de água.
“Há uma dependência básica de água externa e, por isso, se essa água não chegar, a paisagem do Pantanal poderá mudar”, afirma Felipe Dias, diretor executivo do Instituto SOS Pantanal, organização de conservação sem fins lucrativos.
Também pode ser desastroso às mais de 2,2 milhões de pessoas que vivem no Pantanal brasileiro, muitas das quais não só dependem de seus recursos naturais, para o próprio sustento, como também do ecoturismo.
Em busca de soluções aos incêndios florestais
São preocupações assim que motivam conservacionistas como Dias a tentar evitar novos incêndios. Sua principal estratégia é defender a criação de um sistema nacional de alertas contra incêndios florestais, bem como investimentos em treinamento e recursos aos bombeiros voluntários locais, afirma ele.
Essas medidas também implicariam maior proteção a onças-pintadas, afirma Fernando Tortato, pesquisador de onças-pintadas no Pantanal da Panthera, organização sem fins lucrativos especializada em grandes felinos.
“O Pantanal é uma das regiões mais importantes para a conservação das onças-pintadas”, explica Tortato, pois sua população era considerada relativamente bem interligada antes dos incêndios. Houve uma redução na população desse felino sobretudo devido à fragmentação do habitat e ao avanço humano, o que levou a conflitos com as pessoas e à exposição a caçadores ilegais.
Se os incêndios florestais se transformarem no novo normal, é importante que os conservacionistas entendam como ocorre a adaptação das onças ao habitat queimado. Para tanto, Tortato planeja monitorar um animal que sofreu queimaduras superficiais durante os incêndios deste ano e que deverá ser devolvido à natureza com uma coleira com rastreamento por GPS.
Por ora, os socorristas ainda se dedicam a ajudar animais com necessidade de cuidados imediatos. Sássi e seu grupo de resgate também montaram pontos de vigilância por câmeras para monitorar os animais que estão recebendo os fornecimentos de alimentos e água e continuam a prestar atendimento veterinário aos necessitados.
Tratar animais com queimaduras e desidratação no Pantanal foi um trabalho que ela nunca imaginou fazer, acrescenta ela.
“Nunca na minha vida pensei que algum dia precisaria trazer água ao Pantanal”, conta ela.