Por Maya Wei-Haas
Ao sobrevoar a vasta tundra siberiana recentemente, uma equipe de TV russa avistou uma formação intrigante: uma cratera com profundidade equivalente a mais da metade de um campo de futebol escavada no chão congelado. A centenas de metros da cratera, havia blocos de gelo e terra arremessados da cicatriz profunda e aparente na superfície.
Essa é apenas a última dentre uma série de curiosas crateras descobertas no Ártico siberiano, após a identificação da primeira em 2014. Os cientistas acreditam que elas tenham se originado de explosões de gás metano e dióxido de carbono presos dentro de acúmulos de terra e gelo — fenômeno que pode se tornar cada vez mais comum com o aquecimento global. Mas ainda restam muitos mistérios.
“Ainda não sabemos o que está ocorrendo”, afirma Sue Natali, especialista em permafrost do Centro Woodwell de Pesquisas Climáticas, localizado em Falmouth, Massachusetts. “Será que esse fenômeno se repetirá em outro local?”
Estudos recentes de outras crateras indicam um mecanismo provável: o criovulcanismo, em que erupções assumem a forma de lama ou lodo congelado em vez de rochas incandescentes derretidas. Tais fenômenos são bastante conhecidos em outras partes do nosso sistema solar, como na lua aquática de Saturno, Encélado. Contudo o criovulcanismo é considerado incomum em nosso planeta. Estudar essas características da Sibéria pode fornecer pistas do que se passa nesses planetas distantes.
Além disso, essa descoberta mostra que ainda há muito a se aprender sobre a nossa “bola de gude azul”, especialmente com o constante trabalho dos cientistas para desvendar as consequências de um futuro mais quente. “Existem processos de que nem sequer conhecemos”, afirma Natali. “Pode haver mais fenômenos desconhecidos; só se sabe o que se conhece.”
Destacando-se na paisagem do Ártico
A primeira cratera siberiana foi descoberta em julho de 2014 — e rapidamente surgiu uma enxurrada de teorias sobre sua origem. Queda de meteorito! Explosão de mísseis! Extraterrestres!
Nos anos seguintes, pesquisadores identificaram mais 15 crateras suspeitas de explosões naturais. A abertura recém-encontrada, de número 17, pode ser o maior até agora, afirma Evgeny Chuvilin, especialista em permafrost do Centro Skoltech de Recuperação de Hidrocarbonetos da Rússia. As crateras do Ártico não são fáceis de estudar, pois ficam preenchidas de água durante meses e anos após a explosão, sendo confundidas com um dos inúmeros lagos espalhados pela região.
Logo após essa última descoberta, Chuvilin e seus colegas se apressaram para coletar amostras da gélida cratera, localizada na Península de Yamal, no noroeste da Sibéria. Sob o fundo cinza, amarelo e verde da tundra, a cratera se destaca como “algo que não se encaixa na paisagem”, afirma Chuvilin. “Ao ver de perto uma nova cratera pela primeira vez, seu tamanho surpreende.” Ruídos são emitidos pelo derretimento lento dos solos de suas paredes quase verticais, que se despedaçam e caem nas profundezas — “passando a impressão de estar viva”, conta ele.
A equipe agora está “processando com urgência” as amostras para publicação de um artigo em uma revista científica, explica ele por e-mail.
Os pesquisadores esperam não apenas entender melhor o processo responsável pelas explosões, mas também prever onde poderão ocorrer futuramente. As explosões podem representar riscos aos moradores, que contaram ouvir explosões ou ver chamas próximas aos locais onde foram encontradas novas crateras, afirma Andrey Bychkov, geoquímica da Universidade Estadual Lomonosov de Moscou, que estudou outras crateras, mas ainda não visitou a recém-descoberta. Em 2017, houve relatos de explosão de uma cratera próxima a um campo de pastores de renas do povo nenet. A ameaça também paira sobre a enorme infraestrutura de petróleo e gás da região.
Ingredientes para uma explosão congelada
Análises de outras crateras, incluindo a amostragem de suas paredes congeladas, forneceram alguns indícios do que está ocorrendo. Em 2018, Bychkov e seus colegas propuseram a hipótese de que as explosões eram uma forma de criovulcanismo que ocorre com a combinação explosiva de gás, gelo, água e lama.
As crateras são formadas no interior do permafrost, solo que normalmente permanece congelado durante o verão e recobre mais de 23 milhões de quilômetros quadrados do Hemisfério Norte. Ao que parece, elas se originam em bolsões profundos de solo não congelado, conhecidos como taliks. Taliks são comumente formados embaixo de lagos onde a água da superfície aquece e isola o solo embaixo. No entanto os lagos são formações que sofrem alterações constantemente devido ao congelamento e derretimento do permafrost circundante e, assim, é comum encherem ou esvaziarem inteiramente. E, com o esvaziamento de um lago, o solo inicia o congelamento.
“O recongelamento pode ocorrer por baixo, nas laterais e no topo, dessa forma, congela em todas as direções”, afirma Katey Walter Anthony, ecologista da Universidade do Alasca em Fairbanks. Como o gelo ocupa mais espaço do que a água, a expansão do gelo espreme o lodo descongelado, concentrando e pressurizando o gás e a água, que acaba se projetando na superfície em uma protuberância denominada hidrolacólito.
Nem todas as crateras estão associadas a lagos, observa Natali. Taliks podem se formar em outras situações, como dentro de uma zona subterrânea com alto teor de sal, o que reduz a temperatura de congelamento da água. Alguns hidrolacólitos são continuamente alimentados por baixo devido à elevação de lençóis freáticos.
Hidrolacólitos são comuns em todo o Ártico, existindo mais de 11 mil espalhados pelo Hemisfério Norte. Mas tudo indica que explosões formadoras de crateras são muito mais raras, tendo sido observadas apenas nas Penínsulas de Yamal e Guida, na Sibéria. E essas explosões requerem grande quantidade de um ingrediente específico: gás.
O gás natural é abundante no oeste da Sibéria e parte dele provavelmente se infiltra pelas rachaduras e zonas porosas no solo até chegar ao talik lodoso. Mas há outras possíveis fontes de gás. Micróbios se alimentam de matéria orgânica e expelem metano ou dióxido de carbono. Parte do gás também pode ser proveniente da degradação dos chamados hidratos de metano, uma estrutura cristalina.
“Pode não haver um fator único”, pondera Natali. Diferentes acúmulos de terra e gelo podem ter emissores de gás discretamente distintos, mas todos os gases provavelmente servem a um propósito semelhante: pressurizar. Seja por causa da crescente pressão gasosa ou da desestabilização da calota de gelo na parte de cima, o sistema acaba produzindo uma poderosa explosão capaz de expelir lodo até a superfície e deixar uma cratera acentuada.
“É como champanhe”, afirma Bychkov.
Vínculos climáticos e outros
Estudar as explosões pode ajudar a entender algumas das explosões geladas existentes em outros corpos celestes do sistema solar. Especificamente, as crateras siberianas podem ser um análogo intrigante do vulcanismo de gelo no planeta-anão Ceres, que, ao contrário de muitos planetas gelados onde ocorre criovulcanismo, possui alguns dos mesmos ingredientes encontrados no Ártico, afirma Lynnae Quick, geofísica planetária especializada em criovulcanismo do Centro Goddard de Voos Espaciais da Nasa.
“Ceres é bastante interessante por ter um componente de solo rochoso que participa de processos não encontrados em luas geladas”, conta Quick. “Ainda estamos tentando descobrir o significado das imagens obtidas do planeta-anão.”
Da mesma forma, ainda restam mistérios sobre as crateras siberianas. Um deles é seu vínculo com as mudanças climáticas. O Ártico tem sofrido uma sucessão de aumentos extraordinários nas temperaturas nos últimos anos. Apenas neste verão no Hemisfério Norte, em 20 de junho, a pequena cidade de Verkhoyansk, na Rússia, atingiu causticantes 38oC, a temperatura mais alta já registrada na região desde o início dos levantamentos em 1885.
Embora as crateras pareçam ter proliferado desde sua descoberta em 2014, o fenômeno pode existir há milhares de anos e só foi percebido recentemente, afirma Walter Anthony. Os voos sobre a região tornaram-se mais comuns e houve um enorme crescimento da população de Yamal, em especial. “Agora há uma ferrovia e cidades enormes”, conta Bychkov.
O clima mais quente, contudo, pode contribuir para explosões mais frequentes, já que o derretimento pode desestabilizar a calota de gelo sobre os bolsões gasosos e provocar uma explosão. O derretimento também poderia aumentar as conexões entre o solo e a superfície, criando “chaminés” através das quais os gases profundos podem se infiltrar mais facilmente para cima até atingir os taliks, acrescenta Walter Anthony.
Ao observar o quadro mais amplo de emissões de gases de efeito estufa, as emissões de metano e dióxido de carbono em cada explosão provavelmente são insignificantes. Mas as explosões podem fornecer um “vislumbre em curto prazo de um fenômeno em longo prazo”, afirma Walter Anthony.
As mudanças climáticas já afetaram bastante o Ártico, que está aquecendo a um ritmo ao menos duas vezes mais acelerado do que o restante do planeta. Uma camada cada vez mais espessa de permafrost rico em carbono descongela a cada ano — e, em alguns locais, o solo não está voltando a congelar, até mesmo nos meses de inverno. Tal descongelamento permite que micróbios se alimentem do material orgânico antes congelado e emitam dióxido de carbono ou metano. Mas também há preocupações maiores. O permafrost atua como uma tampa sobre as reservas de gás metano geológico nas profundezas do subsolo e assim reduz a dispersão do gás na atmosfera, explica Walter Anthony. Com o derretimento do permafrost, essa tampa pode ficar com cada vez mais orifícios que permitem que o metano escape à superfície.
Walter Anthony estuda esse fenômeno em lagos do Ártico e observa que estudos recentes sobre a formação de crateras podem já ter mais evidências das borbulhas do gás profundo até a superfície. “À medida que o permafrost se transforma de um pedaço de queijo cheddar para um queijo suíço, esses fenômenos serão cada vez mais comuns”, conta ela.
“É um mistério na história das mudanças climáticas.”