Da Redação
A indígena Daiane Oliveira, 24, levou um susto ao acordar na sexta-feira (12/6) e ver o filho com febre e dores pelo corpo. Ela mora na Aldeia Bororó, em Dourados, e logo após os afazeres domésticos se deslocou ao Hospital da Missão Caiuá, chegando na unidade às 12h. Por volta das 15h30min, ela e o filho, de seis anos, ainda não haviam sido atendidos pelo médico.
O local estava aparentemente pouco movimentado, com cerca de 20 pacientes aguardando nos corredores. Profissionais com aparato para prevenir o contágio do novo coronavírus entravam e saíam de portas o tempo todo, num espaço ainda utilizado de forma comum com pacientes de outras especialidades.
A Missão Evangélica Caiuá mantém R$ 508 milhões em convênios com o governo federal válidos até 2021, já recebeu R$ 305,5 milhões. Com máscara cobrindo apenas parte da boca, Daiane disse estar preocupada com o filho devido ao surto de Covid-19 na reserva.
“Ele está com dor de cabeça, teve febre. Pegou hoje. Não tivemos contato com ninguém infectado, mas fiquei com medo. Eu fico preocupada porque tem muita gente infectada. Lá em casa não recebo ninguém mais. Estamos morando em três: eu, ele o irmãozinho dele”, relata.
O marido dela trabalha em lavouras fora da cidade. Por causa da pandemia fica na fazenda onde trabalha. Daiane fica em casa para cuidar dos afazeres domésticos e das crianças. Ela garante que está mantendo todos os cuidado de higienização na residência, inclusive com uso de álcool em gel. Quando sai, apenas usando máscara.
A preocupação de Daiane, porém, não parece ser a de muitos indígenas na reserva de Dourados, a maior aldeia urbana do Brasil. Na estrada esburacada que dá acesso à aldeia Jaguapiru, dezenas de pessoas transitam sem usar máscaras. Nas casas, grupos aglomerados não respeitam o distanciamento de um metro e meio recomendado, também sem a proteção da boca e nariz.
CACIQUE MANDOU
O cacique Izael Morales diz que é impossível convencer a população para o uso de máscara, principalmente em casa. “Se não houver uma lei que diga: tem que ser assim, eles não vão usar”. A situação é semelhante na Bororó, conforme relatou o líder da comunidade Gaudêncio Benites.
Morales afirmou ainda que as aglomerações na aldeia que ele coordena se dão devido ao número de pessoas residentes num mesmo terreno. “É tradição do indígena morar em família. Então se a filha casa, constrói um imóvel nos fundos da residência dos pais. Quando vê são mais de 20, 30 pessoa num terreno só”, explica.
Para o líder, enfrentar a pandemia tem sido um desafio enorme. “O coronavírus só veio para mostrar ainda mais os problemas que a gente carrega há anos na comunidade”, afirmou.
Segundo Izael, a falta de estrutura na reserva urbanizada faz com que os indígenas vivam de forma precária. No mês passado ele denunciou pelas redes sociais o transporte improvisado a uma paciente diagnosticada com Covid-19, devido a ausência de assistência do Corpo de Bombeiros e Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Em entrevista ao Correio, Izael conta que a justificativa dada pelos socorristas era de que não havia viatura habilitada disponível para o transporte.
“Bombeiro, Samu, Polícia, toda vez que a gente precisa do serviço deles, nunca eles falam que já estão deslocando viatura para cá. Sempre é: espera um pouco que a viatura está fazendo serviço não sei onde, ou, a viatura acabou de sair e estamos sem efetivo. A gente sabe que eles tem pouco efetivo, mas a gente nunca vai ligar pra ser atendido no momento”, disse reconhecendo a importância de serem instalados postos de atendimento móvel dos Bombeiros, Samu e Polícia na reserva.
Para justificar a necessidade desse investimento, o líder indígena destaca a densidade populacional na aldeia em Dourados. São cerca de 17 mil moradores, nos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Izael garante que esse número já está bem maior, chegando a 20 mil. Ele ressalta que na reserva são milhares de eleitores, que confiam seus votos durante as disputas políticas, e depois são esquecidos pelo poder público. “Sem falar que a gente também contribui para a economia de Dourados, mas sem retorno algum”, lamenta.
O Corpo de Bombeiros Militar afirmou em nota que determinou abertura de sindicância para averiguar o fato em questão. Já o Samu, através do coordenador Sandro Barreto dos Santos, afirmou que antes que a regulação da paciente fosse efetivada, a ligação caiu sem retorno. O Samu ainda disse que, após contato com o hospital da Missão, “foi identificada a admissão da paciente, por volta das 12h15, na unidade de saúde, “estável, sem qualquer sinal de SRAG [síndrome respiratória aguda grave], saturando bem em ar ambiente, sem necessidade de remoção pela unidade de suporte avançado”.
Álcool em gel? Índios não têm água e sabão
Se a crise sanitária do novo coronavírus é um desafio enorme até mesmo para os países mais desenvolvidos do mundo, nas comunidades indígenas de Dourados ela cria um cenário de caos sem precedentes. A falta de condições básicas amplia a gravidade da situação e aumenta a insegurança para a população.
O fornecimento de água, por exemplo, é mais um dos problemas crônicos enfrentados pelas famílias na reserva. Muitos sofrem com distribuição por períodos do dia apenas, outros com a escassez total, sendo necessário acúmulo de água da chuva ou uso compartilhado com vizinhos. O pior é quando a água reservada se torna insípida, aumentando o risco de outras doenças.
Na aldeia Panambizinho, por exemplo, a falta de água obriga mulheres e crianças a caminharem quase dois quilômetros até o córrego Yju Mirim, alguns carregando galões em carroça ou até mesmo nas costas.
“Uma das medidas de prevenção para Covid é a higiene das mãos frequente, fora o álcool em gel, e na aldeia a grande maioria das família não possui água encanada nas casas. Como que vamos orientar a população para esses cuidados básicos e a realidade vai contra ao que é esperado do nosso trabalho? Nem água que o básico essas famílias têm”, afirmou fonte ligada à Sesai (Secretaria de Saúde Indígena).
Na aldeia Bororó, o líder Gaudêncio Benites afirma ao Correio que o enfrentamento do surto do novo coronavírus tem sido feito à duras penas. “O que conseguimos fazer são as barreiras e a conscientização do povo para o uso de máscara e álcool em gel. Infelizmente temos vários infectados e o índice vem crescendo porque estão fazendo testes quase diariamente. Isso tem preocupado a gente e estamos fazendo a nossa parte, mesmo que de forma improvisada”, afirmou.
Na Bororó, a vulnerabilidade das famílias chama atenção. Falta de alimentos, moradia segura e insalubridade fazem parte da rotina diária de quem vive por lá. Gaudêncio relata que a comunidade precisa do apoio da sociedade, já que muitos não conseguem emprego e condições de plantio subsistente. Alguns chegam a viver em situação de miséria.
E essa condição amplia outros graves problemas, como o consumo de álcool e drogas, que impulsiona os índices de violência na reserva.
O cacique Izael Morales, da Jaguapiru, explicou à reportagem que devido a pandemia a ação da segurança comunitária acabou sendo comprometida, mas que meios de comunicação estão sendo fortalecidos para ajudar a minimizar os casos de violência doméstica e abuso sexual.
Ele também comentou o fato das crianças estarem sem aulas. Morales reconhece que há uma parcela da comunidade que não assume as responsabilidade da paternidade, fazendo da escola um abrigo para os filhos. Ele disse que na aldeia, há professores que chegam até a encaminhar crianças para o posto de saúde, tamanho estado de abandono e descuido.
“As crianças estão sofrendo com essa falta de aulas. Nessas horas a ação da liderança é justamente no combate aos maus-tratos”, ressaltou.