Por Felipe Resk e Igor Macário
Na primeira noite do carnaval 2020 de São Paulo, escolas de samba carregaram na crítica social em meio à folia do Anhembi. Teve placas com frases lacradoras. Teve alegoria gigante de Marielle Franco, crítica à violência policial e até menino que veste azul e menina que veste rosa. Mas houve também quem não quis misturar política e Sambódromo.
Mais elaborada do que em edições anteriores, a festa teve como ponto baixo um intervalo forçado de cerca de 1h20, após um carro alegórico enroscar na rede elétrica durante a dispersão, deixar parte da arena sem luz e atrasar as apresentações seguintes.
O incidente aconteceu por volta das 2 horas, no fim do desfile da atual vice-campeã, a Dragões da Real – a terceira escola da noite. O abre-alas, que havia passado normalmente sob o pórtico que mede o limite de altura na avenida, bateu em um fio na saída do Anhembi e derrubou a luz de áreas externas do Sambódromo, como nos banheiros e tendas de alimentação. O cronômetro oficial também parou de funcionar. A companhia de luz Enel teve de ser acionada e a Avenida Olavo Fontoura ficou travada. A escola, no entanto, não deve perder ponto, já que o problema ocorreu após o fim do desfile.
Embora as apresentações tenham continuado depois de o problema ser resolvido, houve quem se sentiu prejudicado. “A gente não preparou o desfile para acontecer à luz do dia, então infelizmente acaba atrapalhando”, disse Eduardo dos Santos, presidente da Acadêmicos do Tatuapé. Prevista para se apresentar ainda de madrugada, a agremiação cruzou a linha de chegada já de manhã.
Em comum, as escolas puderam comemorar que a possível tempestade, aguardada com apreensão, ficou só na ameaça. Já era de manhã, no penúltimo desfile, quando uma chuva moderada começou a cair às 7 horas. Depois parou. “Graças a Deus, São Pedro segurou as torneiras”, comentou Paulo Sérgio Ferreira, o Serginho, presidente da Liga das Escolas de Samba de São Paulo, ao abrir as festividades. A expectativa era de um público entre 25 mil e 30 mil.
Atual campeã, a Mancha Verde levantou a plateia com desfile repleto de mensagens políticas e entra forte pelo bi-campeonato. Durante a apresentação, a torcida chegou a abrir dois bandeirões.
Outro destaque foi a Dragões da Real, apesar do problema do lado de fora da avenida.
Barroca Zona Sul
De volta à elite do carnaval de São Paulo após 15 anos, coube à Barroca Zona Sul abrir as apresentações. A escola contou a história da líder quilombola Tereza de Benguela, com personagens e adereços cheios de referências à cultura africana. Pela avenida, sambaram orixás e passistas de turbante. Nas fantasias, muitos detalhes com búzios.
Com objetivo de se manter no grupo especial, o ativismo fez parte do desfile. Já no primeiro carro, em cores escuras, trouxe a tristeza pela escravidão. Em uma das alas, exibiam-se frases de efeito. “Lute como uma mulher”, dizia uma das placas. Mas sucesso mesmo fizeram dezenas de crianças que, vestidas com batas, distribuíam tchauzinhos e gestos de coração à plateia. Por onde passava, o carro arrancava suspiros.
A escola, entretanto, foi das poucas que enfrentaram problemas. Precisou apressar o passo para encerrar o desfile na risca dos 65 minutos. Um dos carros alegóricos por pouco não bateu na grade lateral de proteção e teve de ser empurrado para voltar à avenida. “Fizemos um carnaval para o povo cantar e o meu povo cantou”, comemorou, ao fim, o diretor de carnaval Marcus Guimarães, o Marcão.
Tom Maior
Segunda a se apresentar, a Tom Maior subiu ainda mais o tom. Em destaque, a escola levou uma alegoria gigante da vereadora do Rio Marielle Franco, assassinada a tiros em 2018, e também representou na avenida episódios de violência policial. “As minorias são a maioria”, exibia uma faixa.
Com o enredo “É coisa de preto”, a Tom Maior relembrou em 21 alas uma série de personalidades negras, desde personagens consolidados, como Aleijadinho e Machado de Assis, a referências mais recentes, como Maria Carolina de Jesus, Madame Satã e Mano Brown. Um dos destaques ficou a cargo da bateria – uma homenagem ao trapalhão (e sambista) Mussum.
Para encerrar o desfile, a escola também precisou correr, o que gerou aflição entre seus integrantes. Outro susto foi quando o principal mestre-sala da escola, Jairo Silva, passou mal após o desfile e precisou ser socorrido pelos bombeiros e levado a um hospital. Segundo uma responsável pelos casais de mestre-sala e porta-bandeira, a fantasia é leve e não deve ter influenciado.
Dragões da Real
A julgar pela animação dos integrantes ao fim do desfile, a atual vice-campeã, Dragões da Real, desponta entre as favoritas ao título. Tendo o riso como pano de fundo, a escola fez um desfile dinâmico, com acrobacias aéreas, apresentação de pole dance e carros equipados com luz de led, lançadores de fumaça e até escorregadores.
“Fazia tempo que eu não via a Dragões ser aplaudida de pé e, hoje, foi”, afirmou o presidente Renato Remondini, o Tomate, bastante abraçado ao fim da apresentação.
Com o samba-enredo marcado pelo bordão “Quá quá ra quá quá”, o desfile explorou atividades relacionadas à felicidade. Entre referências, trouxe Charles Chaplin (cinema), Beethoven (música) e médicos do Doutores da Alegria – mas nenhuma referência política.
Fora da avenida, a Dragões acabou marcada por ter sido responsável por atrasar o desfile seguinte, mas não deve perder ponto. Na dispersão, o abre-alas enroscou na rede elétrica na saída do Anhembi. Por causa do incidente, a Mancha Verde só entrou no Sambódromo mais de uma hora depois do previsto, às 3h50.
Mancha Verde
Apesar da demora para finalmente entrar na avenida, a atual campeã do Carnaval de São Paulo mostrou um desfile colorido e bastante engajado. A escola ainda desfilou com uma emoção “extra”, sem os cronômetros da avenida. Os relógios foram desligados com a queda de energia e o tempo teve de ser marcado em celulares dos organizadores.
Em uma das alas, chamada “Homem veste azul, Mulher veste rosa“, a escola trouxe com ironia uma frase polêmica da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Em outra, a ‘Penhas e Marias’, a escola abordou a questão da violência contra mulheres. Por fim, houve referências a mães que perderam seus filhos para a violência, relembrando episódios como o ocorrido no baile funk de Paraisópolis.
Durante o desfile, a Mancha Verde levantou a arquibancada, com direito a bandeirões. Um deles, com a imagem de Jesus Cristo e a frase (que também é o lema da escola): “Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem”. A rainha de bateria Viviane Araújo foi outro grande destaque da escola.
Acadêmicos do Tatuapé
A escola levou precisos 2.761 componentes para homenagear a cidade de Atibaia, no interior de São Paulo. Em clima de roça, apresentou no Sambódromo referências da culinária ao turismo da cidade. Em uma das alas, exibiu 60 bonecos de personagens como Cebolinha e Pato Donald, típicos do carnaval local.
Outro carro lembrou a tradição na produção de flores. Atibaia representa cerca de 25% das flores produzidas no País e teve um carro alegórico dedicado ao tema. Durante o desfile, integrantes do setor de Harmonia borrifavam perfume para cima.
Sem entrar em polêmicas, a apresentação transcorreu com calma e a escola cruzou a linha de chegada aos 61 minutos. Ainda assim, integrantes reclamaram de ter entrado na pista atrasado, uma vez que a Tatuapé estava programada para se apresentar ainda à noite, mas amanheceu no meio do desfile.
Império de Casa Verde
A escola da zona norte foi outra a se esquivar dos enredos politizados. A escola entrou já de manhã e trouxe o enredo Marhaba Lubnãn, homenageando o Líbano e a comunidade libanesa no Brasil. A tricampeã no carnaval paulistano não pareceu se importar com a hora de atraso e trouxe um desfile forte para o sambódromo.
Com alegorias brilhantes e bastante luxo e movimento, a escola mostrou tradições da cultura libaensa, referências ao deserto e até sarcófagos giratórios num dos carros alegóricos.
A escola ainda enfrentou chuva mais para o fim do desfile, que não atrapalhou a evolução. “Foi para lavar a alma do atraso”, comentou um dos integrantes. A Império de Casa Verde cruzou o fim da avenida aos 62 minutos de desfile com muita comemoração das equipes com a conclusão.
X-9 Paulistana
Última escola do primeiro dia de desfiles, a X-9 encarou pista molhada, mas já sem chuva. Sob enredo bem brasileiro, chamado “Batuques Para um Rei Coroado”, levou para avenida fantasias ornadas com tambores, pandeiros e toda sorte de instrumento de percussão. A licença poética ficou por conta da bateria, fantasiada de coração: o mais importante dos batuques.
A escola esbanjou colorido nos adereços e apresentou carros alegóricos rico em detalhes, usando ladrilhos, espelhos e até vasos de planta. Por causa do avançado da hora, o Anhembi já estava esvaziado. O público que ficou para conferir, no entanto, se emocionou.
Uma das alegorias apresentou problemas durante a passagem da X-9. O carro, composto de duas partes, se separou e precisou ser manobrado com cuidado e força extra das equipes responsáveis. A escola encerrou desfile com 63 minutos de avenida.